Cultura

Passados que não passam

Descubra como o templo de Hatshepsut e outros monumentos desafiam o esquecimento e preservam a memória da humanidade

Há quem acredite que o passado passa. E se for justamente o contrário, se ele for o que nunca nos abandona? - Imagem: René Magritte, A Memória (1948). O inconsciente que insiste em se revelar

Marlene Polito Publicado em 23/09/2025, às 11h28

Pedras que desafiam o tempo

Escavado na pedra viva de Deir el-Bahari, o templo de Hatshepsut repousa entre o deserto e a falésia como se o tempo tivesse se rendido a ele.

A rainha-faraó, que ousou governar um Egito de homens no século XV a.C., ergueu um monumento para eternizar sua história. Ela vestia o manto simbólico da masculinidade, barba postiça, títulos de faraó, não por vaidade, mas para legitimar o próprio poder em uma sociedade que raramente aceitava uma mulher no trono.

Após sua morte, seu enteado e sucessor Tutmés III mandou raspar seus cartuchos e mutilar suas imagens. Queria apagar a lembrança da soberana que desafiara a ordem patriarcal. O tempo, porém, teve mais paciência que a política: a pedra permaneceu, e Hatshepsut voltou a reinar na memória da humanidade.

Templo de Hatshepsut

 

Esse desafio ao esquecimento ressurge em outros cenários. O Coliseu de Roma, apesar de terremotos, pilhagens e usos sucessivos - arena de gladiadores, pedreira de mármore, santuário cristão - ainda se impõe como testemunha da Roma imperial.

Em Machu Picchu, as ruínas andinas preservam a sofisticação da engenharia inca, guardando rituais e segredos mesmo após séculos de abandono e redescoberta.

Machu Picchu

 

E há Jerusalém, onde as muralhas concentram talvez a mais densa disputa de memórias do planeta. Cercadas e reconstruídas inúmeras vezes, essas muralhas já separaram reinos de judeus, cristãos e muçulmanos; viram exércitos romanos destruir o Templo, cruzados erguer fortalezas, otomanos impor novas pedras.

Hoje, ainda delineiam fronteiras simbólicas entre povos, religiões e narrativas nacionais. Cada camada de pedra carrega marcas de conflitos políticos, guerras de conquista, peregrinações e negociações delicadas que continuam a reverberar no presente.

Ali, história, fé e identidade se entrelaçam de tal forma que ninguém detém, sozinho, o direito de dizer onde termina o passado e começa o agora.

Quando a arte se recusa a esquecer

A arte transforma essa permanência em linguagem. Francisco Goya, em O 3 de Maio de 1808, fixou para sempre o horror da guerra napoleônica, fazendo da luz dos fuzis uma revelação quase bíblica.

Francisco Goya, O 3 de Maio de 1808

 

Anselm Kiefer, com telas de palha (alusão aos cabelos dourados de Margarethe) e de chumbo e cinza (referências ao Holocausto e ao nazismo) converte as ruínas do pós-guerra alemão em paisagens de memória pungente, que a história insiste em manter viva.

Goya e Kiefer mostram que a dor não se apaga; apenas muda de forma.

Anselm Kiefer, Margarethe (1981)

 

Benjamin e o dever de lembrar

Walter Benjamin via o tempo como constelação, não como linha. Para ele, cada geração carrega uma responsabilidade política: quando o presente atravessa um momento de crise, o “instante de perigo”, é preciso arrancar da história oficial os fragmentos, as vozes e as experiências dos vencidos antes que desapareçam. A memória, nesse sentido, é um ato de resistência, uma maneira de impedir que os vencedores apaguem o que não lhes convém.

Essa visão não ficou no plano teórico. Em Infância em Berlim, escrita nos anos 1930, Benjamin transforma lembranças domésticas em pequenos monumentos contra o esquecimento. Recolher essas memórias era, para ele, resistir.

Em uma cena minúscula, “as meias cuidadosamente dobradas na gaveta da infância”, o gesto banal de abrir o armário tornava-se um rito silencioso. Cada dobra guardava calor, promessa e um mundo em repouso. A memória, para Benjamin, age do mesmo modo: recolhe o vivido, dobra-o em camadas e, um dia, ao acaso, o desdobra diante de nós.

Proust e os ecos involuntários

Essa percepção encontra eco em Proust. Se a madeleine convoca lembranças adormecidas pelo paladar, as meias de Benjamin revelam que também o tato e a simples visão de um tecido podem abrir passagens para o passado.

Em ambos, o ontem não desaparece; ele apenas espera o instante em que o presente o chama de volta.

Expressionismo e Surrealismo, entre traumas e sonhos

O século XX fez desse diálogo com o irremovível um campo de batalha estético.

O expressionismo, com artistas como Edvard Munch em O Grito e Ernst Ludwig Kirchner em suas cenas urbanas deformadas, traduziu as angústias e traumas de um mundo em convulsão.

O surrealismo, de Dalí e Magritte, abriu passagem para o inconsciente, revelando fantasmas pessoais e coletivos, medos e desejos que a razão não continha.

“O passado não está morto. Nem sequer é passado.” (William Faulkner)

Talvez seja por isso que ficamos diante do templo de Hatshepsut - ou do Coliseu, de Machu Picchu, das muralhas de Jerusalém - com a sensação de que o ontem nunca terminou.

O passado não passa. Ele nos habita, se esconde na pedra, no quadro, na música. E, quem sabe, somos nós que não deixamos que ele vá, porque precisamos de suas marcas para compreender quem somos.

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