A dor do inocente é a pergunta que nenhuma época conseguiu responder

por Marlene Polito
Publicado em 09/12/2025, às 10h33
Quando o bem não protege
A frase popularizada por uma série coreana, “Bad things at times do happen to good people” não é uma constatação moderna. Ela retoma uma das perguntas mais antigas, inquietantes e irrespondíveis da experiência humana: por que o sofrimento atinge justamente quem não o provocou?
Na tradição bíblica, essa perplexidade encontra forma dramática no Livro de Jó. Um homem justo e íntegro é atravessado por uma sucessão de perdas que não encontra explicação proporcional. É enigma. Não há pedagogia na dor. Há excesso.
Na tragédia grega, a lógica não é diferente. Em Édipo Rei, de Sófocles, o herói descobre que matou o próprio pai e se casou com a própria mãe. Ele se cega voluntariamente; não há castigo imposto. A dor não nasce da culpa, mas de uma força anterior ao próprio querer: o destino, que não é punição moral, é estrutura trágica. Mesmo após a punição, a dor não se encerra.
Séculos depois, na modernidade, essa mesma fratura reaparece sem moldura transcendental. Em A Peste, de Albert Camus, o mal não escolhe caráter. O bacilo não distingue quem erra de quem age corretamente. Crianças, médicos, idosos, todos sofrem indistintamente. O sofrimento deixa definitivamente de ser questão moral para se tornar um dado bruto da existência.
A filosofia formula a pergunta. A arte, por sua vez, não responde. Ela mostra.
A matriz simbólica do sofrimento do inocente

Na Pietà, o sofrimento do justo encontra sua imagem mais absoluta. Maria sustenta nos braços o corpo sem vida do filho que não errou. A dor nasce da perda, não da culpa. Tudo ali é pureza ferida. A espiritualidade não funciona como escudo. O sagrado não impede a tragédia e, paradoxalmente, torna-a ainda mais comovente.
A irrupção violenta do mal no mundo

Se na Pietà a dor é silêncio, em Caravaggio ela irrompe como choque. Em O Martírio de São Mateus, o ataque acontece em plena luz. O assassino salta da sombra. Não há negociação com o destino. A fé não impede a facada. A violência invade o sagrado sem pedir licença.
O Barroco nos ensina algo incômodo: a luz não protege, apenas revela.
Quando o sofrimento deixa de ser sacro e se torna social
Na famosa imagem de Dorothea Lange, Migrant Mother, já não estamos diante de santos ou mártires. Estamos diante de uma mãe pobre, cercada por filhos, atravessada pela fome e pela incerteza. É a conversão do sofrimento sacro em sofrimento histórico. Agora não pede salvação, pede sobrevivência.
A pergunta é a mesma, apenas muda o cenário: o que ela fez para merecer isso? Nada. Ainda assim, sofre.
A guerra e a criança; a injustiça em estado absoluto

Na imagem da criança de cabeça raspada, em primeiro plano, com a cidade destruída ao fundo, não há agressor visível. O mal é difuso. A criança olha para nós como se perguntasse o que ninguém consegue explicar.
Aqui, a frase da série coreana deixa de ser reflexão e se torna evidência. O mundo, afinal, não distribui dor segundo critérios morais.
O sofrimento silencioso e estrutural

Em Shirin Neshat, o sofrimento dispensa sangue e ruína explícita. Ele se inscreve no gesto, na marcha das mulheres, no corpo coberto que caminha diante do mar. O mar, símbolo clássico de liberdade, está ali, mas não é acessível. Há travessia sem passagem. Movimento sem libertação.
Aqui, o sofrimento não é acidente nem ataque. É condição estrutural. Vem em forma de destino social.
Deus, destino e a crueza trágica
Talvez o mais perturbador nessa travessia não seja constatar que coisas ruins acontecem a pessoas boas, mas reconhecer que existem forças que se movem antes da decisão, antes da escolha, antes mesmo do querer. Chamamos isso de destino, acaso, estrutura, história. O nome varia; a ferida permanece.
Diante disso, Deus parece escolher o silêncio. Não um silêncio de abandono, mas de mistério. Um silêncio que não explica nem corrige, apenas acompanha, como Maria acompanha o corpo do filho na Pietà. Entre o silêncio divino e a brutalidade do mundo, o homem descobre que sua vulnerabilidade é irredutível.
E talvez seja exatamente aí que a arte se torna necessária: incapazes de eliminar a dor, ainda podemos olhá-la, dar-lhe forma, impedir que desapareça sem sentido.
A arte não resolve o dilema entre Deus e o destino, mas oferece ao homem uma última possibilidade de resistência: não desviar o rosto da dor e convertê-la, quando possível, em gesto, imagem, memória.

Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]

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