Cultura

Picasso foi um dos maiores gênios da história das artes

Entenda como Picasso se tornou um ícone da arte moderna e refletiu as complexidades do século XX

O sonho é o lugar onde o real se dissolve e a arte se reinventa - O Sonho, Pablo Picasso (1932)

Marlene Polito Publicado em 04/11/2025, às 11h31

O que é ser Picasso?

Ser Picasso é ser espelho de um século inteiro, é carregar no gesto o espanto, a dor e o delírio da modernidade.

Giulio Carlo Argan escreveu que, desde Michelangelo, nenhum artista havia sido tão identificado com o espírito de sua época. Essa comparação é reveladora. Vasari, o primeiro historiador da arte, ao analisar o Juízo Final, apresenta Michelangelo como uma figura quase divina, cuja arte refletia e influenciava os rumos espirituais e políticos de seu tempo, especialmente durante a Contra- Reforma.

Picasso assume papel semelhante na modernidade. O final do século XIX marca o início de uma nova configuração de época. E ele surge nesse contexto como um catalisador, alguém que absorve, transforma e projeta os sinais de seu tempo.

Sua obra não apenas dialoga com os dilemas do século XX, mas os transforma em linguagem visual. Guernica, sua obra principal, é mais que uma pintura. É um manifesto contra a barbárie, um grito político e humano.

A arte deixa de ser apenas representação e passa a ser interpretação, ruptura, invenção.

Os precursores, o gesto de ruptura antes de Picasso

Antes dele, outros haviam aberto caminho.

Van Gogh fez da natureza o reflexo de sua alma; o pathos tornou-se matéria.

Cézanne desmontou a perspectiva e mostrou que o olhar podia ter mais de um centro.
Gauguin buscou o “primitivo” e inspirou em Picasso o fascínio pelas máscaras africanas.

Courbet e os impressionistas libertaram a arte da idealização e a aproximaram da vida.

Paul Cézanne – Natureza morta com cesta de maçãs (1893-1895). A semente da ruptura

 

O percurso de um gênio

Sua trajetória inicial revela o itinerário de um espírito em busca de sentido.

Aos quatorze anos, Picasso já dominava a técnica acadêmica. Mas foi em Paris, entre cafés e ateliês, que descobriu que a arte podia ser também pensamento. Convivendo com poetas e colecionadores, como Gertrude Stein, aprendeu que criar é dialogar com o tempo.

Essa curiosidade insaciável o fez pertencer a todos os estilos e a nenhum: sua única fidelidade era à liberdade.

As fases da alma

A fase azul (1901-1904) mergulha na melancolia, e a dor se faz cor. Reflete crises pessoais e sociais: o homem dobra o corpo para ouvir o próprio silêncio.

A fase rosa (1904-1906) marca o retorno ao afeto e à leveza, com tons quentes e temas circenses.

O Velho Guitarrista (1903-1904). Paulo vestido de Arlequim, (1924)

 

Em seguida, o encontro com as máscaras africanas rompe o lirismo. O rosto humano se torna enigma, estrutura, símbolo. A máscara, em Picasso, não oculta, revela.

Essa fusão entre o arcaico e o moderno inaugura o Proto-Cubismo: a arte como dissecação e reconstrução do visível. A forma começa a se desconstruir.

Em Les Demoiselles d”Avignon,, sua segunda obra mais importante, Picasso representa as mulheres dessa rua de Barcelona com muitos prostíbulos. Mistura a figuração mais próxima no meio, inclui as máscaras africanas nas extremidades, e reduz as partes da pintura a figuras geométricas menores. A natureza morta, referência a Cézanne, também está presente.

Les Demoiselles d’Avignon (1907)

 

Georges Braque e o nascimento do Cubismo

Com Georges Braque, ele leva essa descoberta ao limite, dá forma à revolução.

O Cubismo desmantela a ilusão de profundidade: o espaço tridimensional é trazido à tela e reorganizado. Os planos se sobrepõem, o tempo se mistura, e o olhar do espectador completa a obra.

Essa versatilidade seria sua marca definitiva. Picasso não pertencia a um movimento, mas a todos os movimentos, não se prendendo a estilos. Ele os cria, os transforma, os abandona e os reinventa.

O Cubismo Analítico (1909–1912) fragmenta o real até a abstração: violões, garrafas, rostos dissolvem-se em geometrias.

O Cubismo Sintético (a partir de 1912) recompõe o mundo a partir dos restos, com colagens, jornais, letras, objetos banais. Há um retorno parcial à figuração.
A arte passa a dialogar com o cotidiano, abolindo a distância entre o estético e o comum.

A pintura se transforma em linguagem. Pensa, cita, ironiza, comenta.

O retorno à ordem

Após a Primeira Guerra Mundial, o impulso de destruição cede lugar à necessidade de permanência. Ele retorna à figuração, mas não à tradição. Cria novas sínteses, e sua obra passa a transitar entre estilos com liberdade absoluta. É múltiplo, plural, inclassificável.

Assim, não há um Picasso, há muitos, todos convivendo num mesmo criador.

O artista total

Entre o Juízo Final e Guernica, corre a mesma ambição: traduzir a condição humana em imagem. Enquanto Michelangelo buscava a unidade perdida, Picasso assumiu a fragmentação inevitável, a do homem, da história, do próprio olhar.

Em sua obra, convivem o sagrado e o profano, o clássico e o experimental, a política e o sonho. Nada lhe era estranho. Transformou o trauma em criação, o instante em permanência, a dor em estrutura.

De Michelangelo a Picasso, o artista deixa de ser imagem de Deus e se torna espelho do homem - trágico, fragmentado, mas infinitamente criador.

 

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