COLUNA

Quando a Justiça impõe limites ao poder algorítmico: o precedente do TJSP sobre bloqueios e banimentos abusivos em plataformas digitais

Tribunal Paulista fixa parâmetros de responsabilização, reconhece relação de consumo mesmo em serviços gratuitos e limita práticas opacas de moderação automatizada

A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo reforça a aplicação do Código de Defesa do Consumidor em serviços digitais gratuitos - Imagem: Reprodução/Redes Sociais

Rogério Palermo Publicado em 09/10/2025, às 18h36

A expansão das plataformas digitais como espaços centrais de comunicação, trabalho e sociabilidade trouxe uma nova fronteira de desafios jurídicos, o que exige dos tribunais respostas firmes e coerentes com os valores constitucionais e com o sistema de proteção do consumidor.

Nesse contexto, a 14ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgamento da Apelação Cível nº 1009292-70.2024.8.26.0577[1], sob a relatoria do eminente Des. César Zalaf, merece destaque.

O acórdão manteve a condenação da empresa Telegram Messenger Inc. para reativar a conta de usuário bloqueada sob a justificativa genérica de “spam”, com fixação de astreintes e majoração de honorários, e, mais do que isso, traçou parâmetros claros para responsabilização e transparência de plataformas digitais que operam no Brasil, mesmo quando o serviço é gratuito.

Logo de início, o Tribunal enfrentou com precisão a tentativa da empresa de afastar a jurisdição brasileira com base no número telefônico internacional do usuário e em cláusulas de eleição de foro e lei estrangeiros.

A decisão afirma, com correção, que o critério determinante é o local de produção dos efeitos e, sendo o consumidor domiciliado no Brasil e aqui sofrendo as consequências do bloqueio, impõe-se a jurisdição nacional (arts 21, II e III, e 22, II, do CPC).

O gesto tem valor institucional e sedimenta o posicionamento de que grandes plataformas que ofertam serviços no Brasil se submetem à ordem jurídica brasileira, sem poder converter termos de adesão em salvo-conduto para escapar do controle judicial.

Em contratos de consumo, cláusulas que subtraem do consumidor a proteção das leis nacionais e o acesso ao foro de seu domicílio são nulas de pleno direito, conforme o art. 51 do CDC. A reafirmação desse princípio, em tempos de globalização digital, protege o jurisdicionado e evita que a assimetria de poder contratual se traduza em ausência de tutela efetiva.

Outro pilar do acórdão, igualmente digno de nota, é a correta incidência do Código de Defesa do Consumidor aos serviços digitais gratuitos. O eminente relator adota a orientação já consolidada segundo a qual a gratuidade aparente não afasta a relação de consumo, pois a remuneração pode ser indireta, com obtenção e tratamento de dados, atenção publicitária, valoração da base de usuários, serviços premium e outros mecanismos de monetização que compõem a onerosidade econômica do ecossistema digital.

Essa compreensão, em sintonia com o art. 7º do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), reconhece a vulnerabilidade informacional e técnica do usuário e impede que o fornecedor se escude na ausência de preço para negar direitos básicos.

A mensagem é clara e inequívoca, pois, havendo oferta massiva de serviço com coleta e tratamento de dados e gestão unilateral de risco, existem deveres proporcionais de segurança, informação e lealdade, com responsabilidade objetiva por falhas, conforme o art. 14 do CDC.

A decisão avança ao aclarar o núcleo problemático do caso, especialmente a opacidade, entendida como falta de transparência, do bloqueio algorítmico. Invocações genéricas a “políticas internas” e “detecção automatizada”, sem logs ou critérios objetivos, não satisfazem o contraditório (CDC, art. 6º, III). Cabe à plataforma comprovar a justa causa quando a prova está sob seu domínio (CPC, art. 373, II).

O acórdão é pedagógico ao afirmar que acusações genéricas não legitimam a ruptura de vínculo contratual contínuo, sobretudo quando os meios de prova repousam nas mãos do fornecedor. Há distribuição racional do ônus probatório nos termos do art. 373, II, do CPC em ambiente de assimetria técnica, e cabe à plataforma comprovar a justa causa do bloqueio quando invoca fato impeditivo do direito do consumidor à continuidade do serviço.

Mesmo sem formalizar a inversão do ônus da prova, o resultado prático permanece, pois a empresa detentora dos registros e dos critérios deve levá-los aos autos, sob pena de a medida disciplinar ser reputada abusiva. Esse ponto dialoga diretamente com a Lei Geral de Proteção de Dados.

Frise-se que decisões que afetem significativamente o titular e que se baseiem em tratamento automatizado de dados exigem transparência sobre os critérios empregados e a possibilidade de revisão humana, nos termos do art. 20 da LGPD.

Se tal cuidado já é indispensável para a indisponibilização de conteúdo, com ainda mais razão se impõe quando se trata de banimento de conta inteira, hipótese que impacta na comunicação pessoal e profissional do usuário. Ao exigir fundamentação concreta e acesso a elementos mínimos de prova, a Corte Paulista prestigia a arquitetura de direitos do consumidor e de proteção de dados e desestimula práticas de caixa-preta incompatíveis com o Estado de Direito.

No plano contratual, o acórdão em destaque oferece um antídoto contra o chamado poder potestativo digital. É compreensível que termos de uso reservem à plataforma a prerrogativa de agir contra abusos, porém não se admite transformar essa cláusula em licença para desligamentos sumários, sem motivação específica, sem proporcionalidade e sem o devido contraditório.

Cláusulas que autorizam cancelamento unilateral sem paridade e sem procedimento minimamente justo colidem com o art. 51, XI, do CDC e violam a boa-fé objetiva, com seus deveres anexos de informação, cooperação e proteção. Quando o serviço é contínuo e estruturante da vida relacional do usuário, a função social do contrato, prevista no art. 421 do Código Civil, ganha relevo, pois a interrupção injustificada não atinge apenas o consumidor, mas também sua rede de contatos e suas expectativas legítimas, o que compõe um verdadeiro patrimônio digital.

Assim, reafirma-se que disciplinar a comunidade não autoriza arbitrariedade, pois moderação eficaz depende de critérios claros, de transparência e de possibilidade real de revisão.

O entendimento adotado pela 14ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo converge com a posição recente da Terceira Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 2.139.749/SP[2], sob a relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que reconhece a legitimidade da moderação privada como autorregulação regulada, de modo que os termos podem prever remoções e suspensões, mas permanecem submetidos à Constituição e às leis e não blindam excessos que geram responsabilização. Em cenário de algoritmos e assimetria informacional, transparência, critérios claros e vias de revisão deixam de ser opcionais. Foi exatamente o que fez a Justiça Paulista ao não negar a moderação em tese e ao reverter o banimento por falta de prova e de motivação específica, hipótese que caracteriza falha de serviço e cláusula abusiva.

É igualmente relevante que o acórdão combine tutela específica com incentivos ao cumprimento voluntário. A manutenção da obrigação de fazer com prazo e multa cominatória evita a estabilização do ilícito como fato consumado e, ao mesmo tempo, abre espaço para que a empresa, diante de eventual obstáculo técnico genuíno, comunique pormenores ao juízo da execução, o que concilia efetividade com razoabilidade.

Do ponto de vista sistêmico, a contribuição do julgado é dupla. Em primeiro lugar, reforça a soberania regulatória do ordenamento brasileiro diante de plataformas globais, de forma que quem oferta serviços no território nacional deve submeter-se à legislação local. Em segundo lugar, pavimenta um marco jurisprudencial para a moderação de contas e para decisões algorítmicas, pois impõe padrões de transparência, proporcionalidade e prova capazes de compatibilizar inovação com direitos fundamentais.

A exigência de explicabilidade e de revisão humana não sufoca tecnologia e, ao contrário, incrementa sua legitimidade social e jurídica, além de induzir melhores práticas de governança e accountability (prestação de contas). A partir de uma decisão lúcida, consistente e fundamentada, a 14ª Câmara de Direito Privado do TJSP entrega um acórdão que vai além do caso individual e projeta parâmetros de conduta para o mercado.

A mensagem é simples e contundente: no Estado Democrático de Direito, nem mesmo os algoritmos estão acima da lei. A dignidade do consumidor, a informação clara e o contraditório – balizas clássicas do processo e do direito – também regem o espaço digital. Decisões como esta mostram que o avanço tecnológico pode caminhar com a preservação das liberdades e garantias fundamentais, promovendo um ambiente de inovação responsável, previsível e justo.

[1] “APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. BLOQUEIO DE CONTA DO USUÁRIO NO TELEGRAM SOB JUSTIFICATIVA GENÉRICA DE SPAM. COMPETÊNCIA DA JURISDIÇÃO BRASILEIRA MANTIDA E RELAÇÃO DE CONSUMO RECONHECIDA. APLICAÇÃO DO CDC, DO MARCO CIVIL DA INTERNET E DA LGPD. FORNECEDORA NÃO COMPROVOU JUSTA CAUSA, DESCUMPRIU O DEVER DE INFORMAÇÃO E PRATICOU ATO ABUSIVO. CLÁUSULA CONTRATUAL POTESTATIVA DECLARADA NULA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO CONFIGURADAS. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA QUE DETERMINA A REATIVAÇÃO DA CONTA EM 48 HORAS, COM ASTREINTES, CUSTAS. HONORÁRIOS MAJORADOS. SENTENÇA MANTIDA, APELAÇÃO NÃO PROVIDA”. (TJSP; Apelação Cível 1009292-70.2024.8.26.0577; Relator (a): César Zalaf; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Privado; Foro de São José dos Campos - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/07/2025; Data de Registro: 17/07/2025).
[2] “RECURSO ESPECIAL. MARCO CIVIL DA INTERNET. PROVEDOR DE APLICAÇÃO. PLATAFORMA DE VÍDEO. PANDEMIA DA COVID-19. TERMOS DE USO. DESINFORMAÇÃO. MODERAÇÃO DE CONTEÚDO. REMOÇÃO. LEGITIMIDADE. NOTIFICAÇÃO PRÉVIA. SHADOWBANNING. NÃO OCORRÊNCIA. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. CONDICIONANTES.

1. A controvérsia jurídica consiste em definir se (i) o provedor de aplicação de internet (no caso, plataforma de vídeo) pode remover conteúdo de usuário que violar os termos de uso e se (ii) tal moderação de conteúdo encontra amparo no ordenamento jurídico.

2. Ausente o prequestionamento, e não tendo sido opostos embargos de declaração para suprir a deficiência, aplicam-se as Súmulas nºs 282 e 356/STF.

3. Não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide ante a suficiência dos elementos documentais. Tema 437/STJ.  4.

 Os termos de uso dos provedores de aplicação, que autorizam a moderação de conteúdo, devem estar subordinados à Constituição, às leis e a toda regulamentação aplicável direta ou indiretamente ao ecossistema da internet, sob pena de responsabilização da plataforma.

5. Moderação de conteúdo refere-se à faculdade reconhecida de as plataformas digitais estabelecerem normas para o uso do espaço que disponibilizam a terceiros, que podem incluir a capacidade de remover, suspender ou tornar indisponíveis conteúdos ou contas de usuários que violem essas normas.

6. O art. 19 da Lei Federal nº 12.965/2014 ("Marco Civil da Internet") não impede nem proíbe que o próprio provedor retire de sua plataforma o conteúdo que violar a lei ou os seus termos de uso.

 Essa retirada pode ser reconhecida como uma atividade lícita de compliance interno da empresa, que estará sujeita à responsabilização por eventual retirada indevida que venha a causar prejuízo injustificado ao usuário.

7.  Shadowbannig consiste na moderação de conteúdo por meio do bloqueio ou restrição de um usuário ou de seu conteúdo, de modo que o banimento seja de difícil detecção pelo usuário (assimetria informacional e hipossuficiência técnica). Pode ser realizado tanto por funcionários do aplicativo quanto por algoritmos e, em tese, caracterizar ato ilícito, arbitrariedade ou abuso de poder. Não ocorrência, no presente caso.

8. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido”. (REsp n. 2.139.749/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 27/8/2024, DJe de 30/8/2024.)

São Paulo Justiça defesa Código Lgpd Tribunal Digitais Plataformas Usuário

Leia também