Por trás de seus rituais e símbolos, escondia-se muitas vezes uma prática mais profunda: a alquimia
Marlene Polito Publicado em 29/04/2025, às 11h55
Desde os tempos mais remotos, figuras como bruxas, druidas, feiticeiros e magos povoaram a imaginação humana.
Associados a poderes ocultos, eram vistos como guardiões de saberes antigos, capazes de transformar ervas em cura e metais em ouro. Por trás de seus rituais e símbolos, escondia-se muitas vezes uma prática mais profunda: a alquimia.
Mais do que manipulação de substâncias, a alquimia foi, e continua sendo, uma forma de pensar o mundo. Unia ciência e espiritualidade. Nascida no Egito Antigo, atravessou a Grécia, floresceu no mundo árabe, ganhou prestígio na Europa cristã e, séculos depois, ressurgiria no pensamento moderno como linguagem da alma.
Entre seus mistérios, poucos fascinaram tanto quanto a pedra filosofal, a suposta substância que transformaria metais em ouro e daria imortalidade. Mas, para muitos, ela simbolizava algo ainda mais precioso: o aperfeiçoamento do próprio ser.
A alquimia, em si, tinha um propósito mais amplo: não se limitava à transmutação dos metais, mas propunha uma transformação integral – da matéria bruta em ouro, da alma impura em espírito luminoso. Mesmo rejeitada pela ciência, jamais desapareceu. Sobreviveu nas artes, nos rituais populares e nas metáforas do inconsciente.
A origem do símbolo
Os primeiros registros alquímicos surgem no Egito helenístico. Em Alexandria, saber egípcio e filosofia grega se cruzam em textos atribuídos a Hermes Trismegisto.
Sua enigmática Tábua de Esmeralda resume o espírito da alquimia: “O que está em cima é como o que está embaixo, e o que está embaixo é como o que está em cima.” A frase reflete a crença de que o microcosmo – o corpo, a alma, o homem – espelha o macrocosmo – o universo, o divino.
Da ciência sutil à sabedoria simbólica
Entre os séculos VIII e XIII, no mundo islâmico, a alquimia atinge um de seus ápices. Jabir ibn Hayyan, considerado o pai da química moderna, sistematiza processos laboratoriais, descreve técnicas como destilação e sublimação, e associa a transformação dos metais à purificação do alquimista. A alquimia, nesse período, era ciência e espiritualidade.
Na passagem do saber árabe ao universo cristão europeu, a alquimia continuou a florescer, agora envolta em simbolismos místicos e imagens codificadas.
Durante a Idade Média, manuscritos como o Aurora Consurgens (século XV) uniam texto e imagem para conduzir o leitor por uma jornada espiritual. Mesmo com o avanço da ciência e o início da Idade Moderna, a alquimia não desapareceu. Isaac Newton, expoente da Revolução Científica no século XVII, dedicaria anos ao estudo de textos herméticos, convencido de que ali estava o segredo da criação.
Iluminura do Aurora Consurgens (século XV)
Montados em um leão e em uma águia, figuras masculina e feminina representam a união dos opostos — força e elevação, terra e céu. Expressa o ideal alquímico da integração dos contrários como caminho para a transmutação interior.
Com o avanço da ciência, a alquimia é desacreditada. Mas no século XX, ela retorna com força simbólica. O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung interpreta os textos alquímicos como projeções do inconsciente coletivo. Para ele, os estágios da Grande Obra simbolizam a jornada interior de integração do ser.
Essa revalorização nasce da confluência de fatores: o desencanto com a razão absoluta após as guerras, o avanço da psicologia profunda, o fascínio pelas tradições antigas. A alquimia, antes desprezada, ressurge como espelho do humano em transformação.
A arte como laboratório
Desde a Idade Média, a arte traz símbolos alquímicos — em vitrais, esculturas, afrescos. No século XX, a presença se intensifica. Movimentos como o surrealismo e o expressionismo buscaram traduzir fórmulas invisíveis e processos de transmutação. Em Anselm Kiefer, o chumbo, a palha e a terra dão forma à destruição e ao renascimento.
Também nos saberes populares – nas ervas que curam, nas palavras que protegem, nos ritos que transformam dor em força – ecoa o mesmo princípio: o de que tudo pode ser transmutado.
Anselm Kiefer – The Secret Life of Plants (2002)
Em “The Secret Life of Plants”, Anselm Kiefer transforma livros em esculturas de chumbo. As páginas pesadas e silenciosas evocam a alquimia do saber: a transmutação da memória em matéria.
A pedra que nunca se perdeu
Em tempos de exatidão e pressa, a alquimia sobrevive onde menos se espera. Em cada gesto de reconciliação, em cada superação silenciosa, em cada criação nascida do caos, ali ela resiste.
Talvez ainda busquemos a pedra filosofal. Mas o que os antigos sabiam, e a arte continua revelando, é que o verdadeiro ouro se encontra dentro de nós.