Cultura

A lágrima escorreu da face para o teclado e virou emoji

Como as emoções moldaram culturas e influenciaram a arte ao longo da história

No canto da tela, uma lágrima digital; a alma resiste, mesmo em código - Imagem: Reprodução
No canto da tela, uma lágrima digital; a alma resiste, mesmo em código - Imagem: Reprodução
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 05/08/2025, às 09h54


Quando até o sagrado se indigna

Costumamos imaginar Jesus sereno. Voz baixa, olhar compassivo, gestos calmos como o lago da Galileia. Mas eis que, no meio desse cenário de paz, explode uma cena quase cinematográfica: mesas viradas, cordas em punho, gritos.

Relatada pelos quatro evangelistas, a expulsão dos vendilhões do templo revela um Cristo inflamado. A fúria não brota da vaidade, mas do valor traído. É um terremoto emocional com nome e endereço: ética.

A emoção ali não é perda de controle, mas coragem de agir. É compaixão em chamas. Justiça em movimento. Emoção que vira gesto. Porque, até no mais sereno dos homens, cabe a tempestade.

É o Cristo divino, sim, mas em sua plenitude humana.

Emoção, o que nos move e nos revela

Se algo nos humaniza mais do que a razão, são as emoções. Antes de falarmos, já chorávamos. Antes de compreendermos, já sentíamos.

Elas nos ligam ao outro, na empatia, no riso, na dor silenciosa. Alegram, protegem, alertam. Nenhuma é fútil. Todas têm razão de ser.

E por isso, onde o homem deixou traço, na palavra, na escultura, na música, lá estavam elas, contidas ou explodindo, sempre presentes.

Melancolia, de Edvard Munch (1891)

Melancolia, de Edvard Munch (1891)

Tristeza sem grito. A dor se curva em silêncio e permanece como pedra no peito.

O sentir, também histórico

Ao longo da história, as emoções foram moldadas por cultura, política, fé.

Na Antiguidade grega, por exemplo, havia uma palavra que carregava esse turbilhão em seu núcleo: pathos.

Diferente da ideia moderna de emoção efêmera, o pathos era a própria potência da alma em estado de comoção. Era a dor de Antígona, a ira de Aquiles, a piedade diante do sofrimento alheio. Era experiência partilhada. Era aprendizado ético.

Por isso, chorar na tragédia era mais que natural: era um ato cívico. A emoção compartilhada restabelecia o laço entre o indivíduo e a comunidade, entre o humano e o divino. Naquele instante de silêncio emocionado, o cidadão reafirmava seu lugar na pólis. E, talvez, no universo.

No estoicismo, por outro lado, domar as emoções era sinal de sabedoria. Não se tratava de suprimi-las, mas de purificá-las, até que restasse apenas o que fosse nobre.

Na Idade Média, as emoções oscilavam entre o pecado e o sublime. Chorar o Cristo crucificado expressava virtude; rir sem medida, possível influência demoníaca. Sentir era uma via para Deus, ou para a danação.

Na modernidade, especialmente com René Descartes, as paixões passaram a ser vistas como forças capazes de desviar o juízo racional. Cabia à razão guiá-las, moldando uma alma forte e virtuosa.

Foi preciso que a arte, a literatura e a filosofia romântica reivindicassem de volta o direito de sentir, de estremecer, de gritar, mesmo sem palavras.

E hoje? Ainda sentimos, mas em outro ritmo. A emoção precisa caber num tweet, escorrer por um emoji, durar o tempo de uma notificação. Está presente, mas domesticada. Técnica. Instantânea.

E, mesmo assim, continua sendo o que nos distingue, o que nos move, o que nos revela.

A arte como espelho emocional

Se as emoções moldaram culturas, a arte foi, e ainda é, seu espelho mais fiel. Desde os primeiros traços nas cavernas até as telas digitais de hoje, o que nos move encontra abrigo nas imagens, nos gestos, na música.

A arte registra o que escapa à lógica. Revela o invisível.

A Virgem das Rochas, de Leonardo da Vinci (1483–1486)

A Virgem das Rochas, de Leonardo da Vinci (1483–1486)

Entre pedras, gestos e mãos, há uma serenidade inquieta, o tipo de emoção que não levanta a voz, mas se aloja fundo.

Guernica, de Pablo Picasso (1937)

Guernica, de Pablo Picasso (1937)

Em Guernica, o horror da guerra é fragmentado em ângulos agudos, gritos calados, olhos arregalados. A dor está ali, mas estraçalhada, como a própria dignidade humana em tempos de violência.

Les Mariés de la Tour Eifell, de Chagal (1938 – 1939)

Les Mariés de la Tour Eifell, de Chagal (1938 – 1939)

O amor levita em Chagal. Os noivos flutuam no céu de Paris, entre flores, galos e torres, como se a ternura os sustentasse. Não há chão sob os pés, mas há vínculo. Emoção sonhada, mas não por isso menos real.

Retrato de Leigh Bowery, de Lucian Freud (1991)

Retrato de Leigh Bowery, de Lucian Freud (1991)

Quando voltamos novamente à terra, a emoção se encarna. Nesta obra, o corpo está nu, deitado, sem pose nem idealização. A carne pesada, a expressão entre o cansaço e a entrega. O peso do corpo vira o peso da alma.

Emoções, mesmo digitais

Hoje, as emoções continuam entre nós. Mas talvez um pouco mais caladas. Transformadas em códigos, gifs, reações automáticas. A lágrima escorreu da face para o teclado. Virou emoji. Pequeno, brilhante, discreto, quase um sussurro do que um dia foi grito.

Ainda assim, ela está lá.

Quando alguém escolhe esse pequeno símbolo, há algo de Picasso naquela escolha. Algo de Lucian Freud. Algo de nós. Mesmo condensada, acelerada, a emoção insiste. Insiste em querer ser notada, vivida, sentida.

Porque, no fim das contas, o que nos diferencia não é a razão fria nem o cálculo. É a capacidade de sentir, e de transformar esse sentir em gesto, palavra, imagem ou símbolo.

Mesmo mínima. Mesmo muda. A emoção permanece.