Cultura

A sabedoria escondida no riso dos bobos

Entenda como o riso é um elo de vida e resistência, mesmo em momentos difíceis

Explore a figura do bobo da corte e seu papel como porta-voz da verdade e do humor - Imagem: Reprodução
Explore a figura do bobo da corte e seu papel como porta-voz da verdade e do humor - Imagem: Reprodução
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 12/08/2025, às 10h14


Posso entrar?

Lá estava ela, sentada numa pequena poltrona, coberta por um casaquinho lilás. Os olhos, escuros e brilhantes como jabuticabas, me observaram com curiosidade contida. Tentei um sorriso, me aproximei devagar, como quem não quer espantar um passarinho. Ela retribuiu com um sorriso quase imperceptível. Mas não disse nada. Nem brincou.

O centro de atendimento era tranquilo. Vozes baixas, passos suaves, brinquedos nas estantes. Os adultos – enfermeiros, pais, voluntários – caminhavam com uma gentileza quase coreografada. Tudo ali parecia como se o tempo andasse em pontas de pé.

De repente, um palhaço assoma à porta, batendo no próprio nariz vermelho. Depois, outro. E mais um. Até que se tornam cinco. Jalecos coloridos, sapatos desproporcionais, expressões entre cômicas e ternas. Um deles tira uma flor do bolso e a entrega a uma mãe. A criança ao lado sorri.

A ordem cede lugar a uma bagunça doce: bexigas que viram bichos, bolhas de sabão que tocam rostos, instrumentos que parecem brinquedos. Não falam muito. Falam com o corpo. E os olhos das crianças respondem. Brilham. A menina do casaquinho lilás ri abertamente e bate palmas.

Ali, no meio do sofrimento, surge outra atmosfera.

Ali, no meio do sofrimento, surge outra atmosfera. Uma trégua breve, porém, inteira.

Compreendi, então, algo essencial: o riso não é apenas alegria. É resistência, é elo, é vida voltando a pulsar. Mesmo diante da dor, encontra frestas. Entra de mansinho, com nariz vermelho e olhos atentos, e transforma o ambiente sem dizer uma palavra.

Hoje, quando um palhaço entra num hospital e arranca um sorriso de quem sofre, esse gesto carrega séculos de história e memória.

Doutores da alegria.

Doutores da alegr

Doutores da alegria

O riso como ritual

Muito antes das cortes e dos reis, o riso já circulava entre nós como um sopro de liberdade. Ria-se para celebrar, para invocar, para curar. Em vez de distrair, o riso despertava. Era ritual.

No Egito antigo, anões ligados ao humor ocupavam cargos próximos ao trono, vistos como detentores de um saber enigmático. E em meio às festas de Dioniso, onde tudo se virava do avesso, os sátiros e mímicos faziam rir para provocar e libertar. Com uma gargalhada que dissolvia a razão e revelava a verdade invertida do mundo.

Entre os romanos, os scurrae e moriones animavam banquetes e parodiavam costumes. Em muitas culturas africanas e ameríndias, a figura do trickster, o trapaceiro sagrado (cf. Saci Pererê), cumpria papel semelhante: transgredia regras, pregava peças e, no fundo, ensinava.

Antes de ser piada, o cômico era ponte entre sagrado e profano, poder e povo, medo e esperança.

O Bobo da Corte

El Bufón Sebastián de Morra, de Diego Velásquez (c. 1644)

El Bufón Sebastián de Morra, de Diego Velásquez (c. 1644)

Na Idade Média, o riso passou a habitar os salões do poder, com cuidado. A palavra era vigiada, o gesto perigoso. E, nesse cenário, surgia uma figura ambígua, o bobo da corte.

Oficialmente encarregado de divertir, era o único que podia dizer verdades sem ser punido. Disfarçado de tolo, observava com precisão. Com trajes berrantes e nariz avermelhado, era confidente, conselheiro, provocador. Seu riso não era só zombaria.
Era um espelho côncavo, e revelador.

Por que o riso nos toca tanto?

Rir é revelação. Uma brecha inesperada por onde escapa o que estava guardado. Freud via o riso como válvula. Bergson acreditava que ele corrigia desvios. A neurociência mostra que o riso ativa áreas do cérebro ligadas à empatia, confiança e prazer. Rir em grupo conecta. Rir sozinho alivia. Rir diante do absurdo protege.

Por isso o riso incomoda. Ele nos desarma. Escapa quando a razão hesita. Diz o que não ousamos. E, como os bobos, revela o que fingimos não ver.

Os Bobos Modernos ainda riem do rei?

O bobo da corte não desapareceu. Mudou de palco. Está nos palhaços de hospital, nos humoristas que enfrentam plateias e microfones, nos cronistas que, entre ironias, lançam verdades com meio sorriso.

Chaplin, com seu vagabundo silencioso, expôs a miséria e o autoritarismo com uma flor. Millôr, Henfil, Jô Soares, cada um, à sua maneira, foi bobo lúcido num mundo que fingia não ouvir.

Mas há também o bobo domesticado, aquele que ri para agradar, que transforma o humor em adereço inofensivo. O risco é o riso virar distração. E o verdadeiro bobo, ao contrário, desconcerta. Faz rir, e depois pensar.

Talvez o bobo seja o último lúcido

A florista cega oferece uma flor ao Vagabundo, em Luzes da Cidade (1931)

A florista cega oferece uma flor ao Vagabundo, em Luzes da Cidade (1931)

Um gesto simples. Um riso que diz mais do que muitas palavras.

Vivemos tempos barulhentos, solenes demais, onde tudo parece urgente, e quase nada é essencial. A palavra pesa, o gesto cansa, a verdade escapa.

E talvez por isso os bobos façam falta. Não disputam razão nem poder, mas dizem, com um sorriso torto, o que ninguém mais ousa dizer.

Não explicam, não impõem. Apenas tocam. Com uma piada, uma careta, um gesto desastrado, rompem o feitiço da seriedade cega. E nos lembram que rir é também pensar. Que rir é também resistir. Que rir, às vezes, é o único jeito de continuar.

Talvez, no fim, os bobos saibam mais do que fingem.
E talvez sejamos nós, os sérios, os que realmente não entendem nada.