Os símbolos da sorte na antiguidade e seu impacto na cultura contemporânea
por Marlene Polito
Publicado em 19/08/2025, às 10h41
Dostoievski e os rituais do invisível
“Não era o dinheiro. Era o instante em que a bola da roleta hesitava. Um segundo de suspensão em que tudo parecia possível. Era ali que ele vivia.”
Dostoievski escreveu O Jogador com pressa, endividado, na beira da falência. Ele conhecia bem o que descrevia. Alexei Ivanovitch, viciado em roleta, não aposta para enriquecer. Ele aposta para existir. Na repetição dos giros, há um convite irresistível: vencer o imprevisível. Domar a sorte.
Mais do que um vício, o jogo em Dostoievski revela uma entrega existencial. Alexei desafia a lógica, o tempo, o Deus que se cala. Aposta como quem reza. Ou como quem provoca.
A sorte, para ele, é um abismo com promessas. E o fascínio está justamente aí.
Mesmo quem diz não acreditar nela costuma fazer um pedido secreto no último segundo. O sujeito pragmático ainda guarda uma caneta “pé-quente”. O investidor acende vela no dia do contrato. E quem nunca viu como “pura sorte” aquele encontro improvável, aquela virada inexplicável?
Há em nós uma resistência à lógica absoluta. Queremos acreditar que existe algo além do previsível. Talvez um empurrão invisível, uma vacilada do destino.
A sorte nos oferece isso: um intervalo. Um sopro no meio da ordem. Ela nos seduz porque promete que, mesmo sem controle, ainda temos chance. E, às vezes, tudo o que queremos é isso: uma chance.
Fortuna, a deusa que girava a roda do mundo
Durante séculos, a sorte teve nome próprio, corpo de mulher e morada nos templos. Os romanos a chamavam de Fortuna, uma deusa real, cultuada, temida, imprevisível.
Carregava um chifre transbordante de riquezas e uma roda nas costas: a Roda da Fortuna, símbolo de que tudo muda, e quase nunca avisa. Foi adorada como protetora da cidade, patrona dos reis e companheira dos guerreiros.
Fortuna, porém, era traiçoeira. Seu amor era fugaz, seus gestos, impulsivos. Por isso, filósofos como Boécio alertavam: confiar nela é dançar à beira do abismo.
Os símbolos antigos da sorte
Muito antes de ferraduras e trevos, a sorte já estava esculpida em pedra, às vezes, literalmente.
Na Roma Antiga, falos em alto-relevo decoravam portas, fachadas e até cruzamentos. Chamava-se fascinum. Acreditava-se que o pênis alado espantava o azar, trazia fertilidade e atraía prosperidade. A sorte estava no impulso vital, naquilo que gera e invade o mundo com potência (Daí fascínio).
No Egito, o Olho de Hórus protegia contra doenças. Na Grécia, hermafroditas e falos ambulantes circulavam como amuletos. Entre os etruscos, sinos fálicos serviam de oferendas aos deuses.
Na Idade Média, mesmo com a repressão religiosa, a Roda da Fortuna sobreviveu como alegoria moral. O cristianismo substituiu os talismãs por relíquias e crucifixos. A lógica era parecida: o contato com o sagrado traria proteção e graça.
Com o tempo, os deuses saíram de cena, mas o desejo ficou.
Hoje, ela se resume a objetos quase banais – olho grego, trevo, joaninha, sapo japonês, roupas da sorte, entradas com o pé direito.
Todos carregam a mesma intenção ancestral: atrair o que escapa ao controle.
Nem a ciência conseguiu tirá-la do jogo
Vivemos cercados por algoritmos, estatísticas, inteligência artificial. Podemos calcular, simular, projetar. Mas a sorte resiste. Esconde-se nas entrelinhas da lógica e continua sendo consultada em voz baixa.
O investidor bate na madeira antes de apertar o botão. O político, mesmo com dados em mãos, pede “benção”.
A tecnologia avança, mas o coração continua pedindo sinais.
A psicologia tenta decifrar o enigma. O efeito da ilusão de controle nos faz acreditar que influenciamos o acaso (cf. bilhete de loteria). O locus de controle externo mostra que, quando não comandamos a vida, buscamos na sorte um alento.
Não se trata de ignorância, mas de desejo. A sorte oferece o que nenhuma equação entrega: a possibilidade do improvável.
Sorte ou mérito?
Hoje, dizer que alguém “teve sorte” pode soar como ofensa. Em tempos de meritocracia, a sorte virou pecado laico. Ninguém quer parecer favorecido pelo acaso.
Ignorar a sorte, entretanto, é também desonesto. A família em que nascemos, os encontros fortuitos, as surpresas do tempo (cf. viralizar). Tudo isso escapa ao mérito. E isso, muitas vezes, não depende de nós.
Vivemos entre o cálculo e o caos. E é nesse intervalo que mora a sorte.
A sorte como último mistério
Talvez a sorte seja o nome que damos ao que não controlamos, mas ainda desejamos. Um pedido disfarçado de estatística. Uma fé envergonhada que carrega chaveiros, gestos e silêncios.
A sorte é o que nos resta quando tudo o que podíamos fazer já foi feito.
É o que invocamos quando o esforço termina, e o desfecho ainda está por vir.
Talvez ela não exista. Ou talvez exista apenas para quem, de olhos fechados, ainda acredita em pequenos milagres.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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