Fernando Pessoa, a infância do olhar e o Natal que chega sem alarde

por Marlene Polito
Publicado em 23/12/2025, às 16h35
Num meio-dia de fim de primavera
tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte,
tornado outra vez menino,
a correr e a rolar-se pela erva
e a arrancar flores para as deitar fora
e a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
(O Menino Jesus, Fernando Pessoa)
Quando o Natal se anuncia, os versos de Fernando Pessoa chegam como uma lembrança doce e imprecisa. Não despertam entusiasmo ruidoso nem emoção espetacular. Instalam um estado de sentir diferente, como se o tempo pedisse outro ritmo e outra escuta. É um sentimento antigo, feito também de cenas que talvez eu nunca tenha vivido, mas que, ainda assim, me pertencem.
Por isso volto sempre ao mesmo poema. O Menino Jesus acompanha meus Natais há muitos anos. Ele me aproxima de um Menino surpreendentemente criança, profundamente humano e, justamente por isso, divino.
“Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e brinca.”
Logo nessa estrofe inicial, o Natal se desloca. Não há anúncio solene, nem teologia, nem promessa de redenção. O Menino não vem explicar o mundo, mas estar nele. Sorri, brinca, corre. Existe. É um Cristo sem peso doutrinário, sem missão explícita, sem gravidade excessiva.
No poema, Pessoa faz algo raríssimo no Natal: desdogmatiza o sagrado sem profaná-lo. O Menino Jesus não é teológico; é sensível, próximo, quase terreno. Habita o mundo com a naturalidade de uma criança que vê as coisas antes de nomeá-las.
“Hoje vive na minha aldeia comigo.”
Limpa o nariz no braço, chapinha nas poças, rouba frutas, foge dos cães. “E, porque sabe que elas não gostam/ E que toda a gente acha graça,/ Corre atrás das raparigas/ que vão em ranchos pelas estradas/ Com as bilhas às cabeças/ E levanta-lhes as saias.”
O divino não se purifica, mas se mistura. E, ao se misturar, se torna vivo.
Não é casual que esse poema pertença a Alberto Caeiro, o heterônimo de Pessoa que sempre desconfiou das explicações abstratas. Para Caeiro, pensar demais afastava as coisas de si mesmas. Ver era suficiente. Por isso, o Menino do poema não carrega símbolos: carrega presença.
“Ele olha para tudo com a clareza com que as coisas existem.”
Nesse verso está a chave de tudo. Pessoa não “explica” o Natal; ele o desloca. O Menino não nega o sagrado . Apenas o retira do pedestal e o devolve ao mundo sensível.
É exatamente nesse ponto que o poema toca a arte. Em seus momentos mais decisivos, a criação artística também tentou reaprender a ver: ver antes de interpretar, mostrar antes de explicar. A infância, não como tema, mas como método.
Quando Giotto pinta a Natividade, o nascimento deixa de ser uma cena suspensa no céu e passa a ocorrer no mundo. Há chão, peso, silêncio. O sagrado não se impõe. Repousa.
Esse Cristo inicial dialoga com o Menino de Pessoa. No poema, ele “fugiu do céu”; em Giotto, já nasceu na terra. O divino não desce em espetáculo: chega em silêncio.

Com Caravaggio, o sagrado avança ainda mais. Entra na carne, na sombra, no cansaço humano. O Menino está ali, vulnerável, sem qualquer aura que o separe dos homens que o cercam. O divino não se afasta da realidade. Nasce no meio dela.
Com Picasso, a questão já não é representar o sagrado, mas reconstruir o olhar. Em Paulo como Arlequim, a infância não é imagem sentimental. É presença que nos obriga a sustentar o olhar.
Picasso dizia ter levado a vida inteira para aprender a pintar como criança. Não se trata de ingenuidade, mas de desaprendizado. Libertar-se do olhar treinado demais, do sentido previsível.

Em Paul Klee, esse caminho se torna consciente. Obras como Ad Parnassum parecem simples, quase infantis, mas revelam rigor e paciência. A infância surge como forma de relação com o mundo: ver sem pressa de concluir, permitir que o sentido surja.
Nesse ponto, o percurso se fecha. O Menino Jesus de Pessoa, Giotto, Caravaggio, Picasso e Klee não falam da mesma coisa, mas olham na mesma direção. Todos parecem concordar que o essencial não está na explicação, mas na atenção.

E é quando esse olhar, depois de percorrer o mundo, se recolhe, que o Menino deixa a cena pública e passa a habitar o espaço mais íntimo.
“Ao anoitecer, brincamos…
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível…
Depois ele adormece e eu deito-o,
levo-o ao colo para dentro de casa…”
Ao final do poema, o Menino já não está fora. Dorme dentro da alma do poeta e, às vezes, acorda de noite para brincar com seus sonhos. O Natal deixa de ser data ou cena. Torna-se companhia.
E então vem a inversão final, de uma ternura desarmante:
“Quando eu morrer, filhinho,
seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
e leva-me para dentro da tua casa.”
Talvez seja esse o Natal que Fernando Pessoa nos ofereceu, e que a arte, ao longo dos séculos, tentou preservar. Um Natal sem espetáculo, sem excesso, sem dogma. Um Natal em que olhar basta. Um Natal em que, por um instante, tudo vale a pena.

Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]

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