Explorando a rica história literária da Rua da Quitanda, onde grandes obras e autores se encontraram ao longo dos anos
Reinaldo Polito Publicado em 11/07/2025, às 10h02
Pego um de meus livros preferidos: Lições elementares de eloquência nacional, de Francisco Freire de Carvalho, uma primeira edição publicada em 1834 pela Casa D’Eduardo Laemmert, e me emociono. O exemplar está intacto, com capa, sem rasuras, sem manchas. Parece ter saído da gráfica.
Leio com atenção todas as informações. Há um complemento no título: Oferecidas à mocidade de ambos os hemisférios que fala o idioma portuguez. É interessante observar a grafia da época. Sobre o autor, foram acrescentados outros dados: Ex-professor de história e antiguidades na Universidade de Coimbra (Emigrado para o Brasil). Será que haveria mais algum dado curioso?
Rua da Quitanda, Rio de Janeiro
Sim, o endereço da editora: Rua da Quitanda, 139, Rio de Janeiro. Espera aí, eu me lembro desse endereço. Mergulho no meu acervo de livros raros e antigos e descubro que a obra Trabalhos oratórios e literários, do Frei Francisco do Monte Alverne, meu patrono na Academia Araraquarense de Letras, também foi publicada pela Eduardo & Henrique Laemmert, em 1863, na mesma Rua da Quitanda, só que no número 77.
Frontispício de Trabalhos oratórios e literários, 1863
As coincidências não parariam por aí. Vejo o nome da empresa onde iria ministrar um curso de oratória esta semana: Siano & Rego – Consultoria de Gestão de Pessoas. Quase não acreditei. A empresa contratante, de Luciano Rego, que foi meu aluno há 35 anos, tem sua sede na Rua da Quitanda, no Rio de Janeiro. É espantoso, a rua tem apenas algumas quadras, e está todo mundo lá.
Encontrei o número 77
Logo cedo, quando me dirigi à empresa para iniciar o curso, resolvi olhar os prédios para ver o que estava no lugar da famosa editora. Encontrei o número 77. A placa com a numeração do 139 não estava lá. Havia dois prédios sem numeração, podia ser qualquer um deles. Fiquei satisfeito mesmo assim. E triste ao mesmo tempo.
Tanto o número 77 quanto os outros dois que poderiam ser o 139 estavam fechados. Aquela região foi muito afetada pela pandemia, por isso, a maioria dos comerciantes encerrou as atividades. Fiquei um tempo contemplando aqueles edifícios. Pensei, quantas histórias foram vividas naquelas salas, quantos segredos foram guardados naquelas paredes.
Rua da Quitanda, 77 – Rio de Janeiro. Foto de Michele Mietzsch
Imagino a ansiedade dos autores e dos editores nos dias que antecederam a publicação. O orgulho dos proprietários daquela casa editorial quando receberam os originais de Machado de Assis. Sim, vários de seus livros foram publicados lá. De uma certa forma, foram trabalhos que se imortalizaram. Eu sou um exemplo. Além desses dois livros que citei, possuo vários outros que saíram do mesmo prelo.
Baile de máscaras
Lembrei-me de uma história contada por Aloisio de Castro, ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Ele se referia a Machado de Assis: “Entrei com meu pai à Livraria Garnier. A um canto folheava livros certo homem de grande aspecto, a quem o Dr. Francisco de Castro (pai de Aloisio) logo se dirigiu com significações de estima. Larga conversa conversaram os dois amigos. Ao despedir-se, bem me lembra, sorria o mais velho a dizer: ‘sim, a vida é um baile de máscaras, uns vão saindo depois dos outros. Já me sinto no fim do baile’”.
Talvez seja esse o motivo da minha quase tristeza, o de constatar que aquela vida cultural efervescente saiu, e assim como no baile de máscaras de Machado, foram para não mais voltar.
Academia Brasileira de Letras
A Rua da Quitanda, localizada no centro do Rio de Janeiro, teve diversos nomes. Inicialmente, há quatro séculos, surgiu como Rua do Açougue Velho, mais tarde recebeu a denominação de Rua do Cotovelo e, finalmente, o nome atual. Como é possível deduzir, o nome faz referência aos produtos alimentícios que eram comercializados naquela estreita viela.
Para dar ideia da sua importância, a rua abrigou a primeira sede da Academia Brasileira de Letras, por onde circulava a intelectualidade brasileira. Que privilégio daqueles transeuntes que esbarravam com os mais importantes escritores da época, que frequentavam a Academia e as editoras.
Se não vamos ao passado, trazemos o passado até nós
Ao voltar para casa, peguei os livros novamente. Folheei algumas páginas. É como se essa história que ficou no passado pudesse ressurgir viva e inspiradora, com legados culturais que forjaram incontáveis gerações. No fim, pensei, sou um privilegiado, pois tenho em mãos essas preciosidades que já perambulam há 200 anos por estantes de bibliotecas e acervos particulares.
E se não podemos mais voltar ao passado, pois o que passou fica sepultado na história, é possível trazer o passado até nós, se não pela concretude de suas características reais, pelo menos com as obras produzidas em determinado momento, que atravessaram o tempo e reluzentes vivem em nosso meio.
Talvez o interesse dos editores tenha sido apenas comercial. Não importa. O que vale mesmo é que, assim como uma obra não pertence mais ao autor depois de publicada, já que a história que conta não será a mesma interpretada pelo leitor, também o produto das editoras sempre atinge objetivos diferentes daqueles pretendidos originalmente.
E assim como o passado se dissolve no tempo, ele também pode brilhar em nossas mãos, em forma de livros, memórias e encontros inesperados. Siga pelo Instagram: @polito