Explorando como a ampliação de detalhes se tornou um fenômeno nas redes sociais e na arte contemporânea
por Marlene Polito
Publicado em 01/07/2025, às 10h51
O detalhe que virou espetáculo
De uns tempos para cá, parece que estamos todos em modo zoom. Câmeras de aumento. Filtros que destacam a textura da pele, o brilho de um olhar, o grão de um café. O trivial virou conteúdo. O detalhe, protagonista.
A enxurrada de imagens nas redes sociais fez do instante pequeno um grande acontecimento. Registramos o momento, o secreto, o desejável, o confessional, o tabu. Como se cada fragmento fosse um bilhete de identidade.
Como se o todo pudesse esperar. Agora o detalhe fala mais alto.
De repente, uma epifania me assombra. Antes de virar trend, o detalhe já era grito. Sempre foi. Mas essa mania de ampliar o olhar não começou com os smartphones. Muito antes de likes e hashtags, alguns artistas já tinham entendido o poder de um recorte bem escolhido.
Georgia O’Keeffe aproximou tanto o olhar que suas flores deixaram de ser apenas flores. Volpi repetiu bandeirinhas até que virassem um mantra de brasilidade. Hopper congelou janelas e silêncios. Frida Kahlo transformou uma sobrancelha, uma lágrima, uma vértebra fraturada em manifesto.
Quando o detalhe vira linguagem
Essa forma de criar sentido a partir de um fragmento, não nasceu por acaso. Cada um desses artistas rompeu, à sua maneira, com os processos tradicionais de representação. O que os une é a escolha consciente de alterar o modo tradicional de contar uma história pela imagem. Decidiram que, para provocar emoção, bastava um único detalhe. Desde que fosse o detalhe certo.
Georgia O’Keeffe: A flor que vira abismo
Georgia O’Keeffe – Jimson Weed 2.
Georgia O’Keeffe abandonou a pintura descritiva para explorar a ampliação quase abstrata de elementos naturais. Diante de suas telas, não há como escapar. Ela aproxima tanto o olhar que as flores deixam de ser flores. Viram curvas, carne, espaço, metáfora.
Muitos enxergaram ali erotismo. Ela, com sua costumeira ironia, rebateu: “Você vê o que quiser ver.”
O fato é que O’Keeffe nos ensinou a olhar de perto. A forçar o zoom muito antes de existirem lentes digitais. Naquele detalhe ampliado, ela nos obriga a uma contemplação quase desconfortável. Algo que, curiosamente, hoje repetimos em selfies, close-ups e vídeos de TikTok.
Volpi: As bandeirinhas que fincam território
Alfredo Volpi – Bandeirinhas
Enquanto O’Keeffe nos arrasta para dentro das pétalas, Volpi faz o caminho oposto: nos convida a olhar para cima. Para fachadas, mastros, o céu das festas populares. Deixou para trás a figuração convencional e, a partir do cotidiano brasileiro, construiu uma geometria afetiva.
Suas bandeirinhas, repetidas com rigor matemático e delicadeza cromática, não são apenas ornamentos gráficos. São marcas de pertencimento. Memória de infância, de rua, de país.
Num mundo saturado de imagens, o gesto de Volpi soa quase como um mantra visual: a repetição de um símbolo até se transformar em linguagem.
Se hoje os algoritmos valorizam padrões e repetições, Volpi já fazia isso com pincel e tinta.
Hopper: O retângulo da solidão
Edward Hopper – Morning Sun
Hopper simplificou a cena urbana até o limite. Sua ruptura foi com a narrativa fácil: criou atmosferas em que a ausência de ação diz tudo.
Seus personagens, muitas vezes solitários, estão ali… sempre recortados por uma janela, uma porta, um vão de luz. Como se o mundo os observasse, e eles, ao mesmo tempo, se recusassem a olhar de volta. O detalhe, aqui, não é apenas o enquadramento físico.
É recorte emocional. Instante de silêncio. Pausa entre um acontecimento e outro. Quantas vezes, hoje, não fazemos o mesmo ao postar uma foto de um canto de janela, de um café meio vazio, de uma sombra na parede?
O algoritmo pode até não saber, mas Hopper ensinou o caminho desse tipo de solidão fotogênica.
Frida Kahlo: O detalhe como identidade
Frida Kahlo – The Broken Column
Frida Kahlo, por fim, rasgou o véu entre o íntimo e o público.
Com Frida, o detalhe vira manifesto pessoal. A sobrancelha, os vestidos típicos, as flores na cabeça, os símbolos espalhados pelos seus autorretratos. Tudo pensado como uma construção de si.
Mas não só. Frida fez de cada dor física um detalhe narrativo. Um colete ortopédico, um sangue, um corte, uma lágrima. Em um tempo em que não existia a palavra “performance” no sentido atual, ela já transformava o próprio corpo em palco.
Hoje, na era das narrativas pessoais nas redes, em que a vida íntima vira espetáculo em bio-performances digitais, Frida seria trending topic em qualquer plataforma.
Entrelinhas da arte e da vida
Curioso pensar que, quando aproximamos o celular para fazer um vídeo, dar aquele zoom dramático ou capturar um detalhe qualquer, estamos repetindo, mesmo sem saber, o que O’Keeffe, Volpi, Hopper e Frida já faziam:
Escolher um fragmento.
Dar a ele um significado.
Fazer dele o espelho de um tempo.
A única diferença é que, agora, esse tempo… somos nós.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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