Relação entre perguntas e criações artísticas, desde Beethoven até os Gêmeos, e o impacto do 'por quê?' na sociedade
Marlene Polito Publicado em 07/10/2025, às 10h10
“A vida pode ser maravilhosa” – Ivan Lins
A vida, para a criança, é literalmente maravilhosa. A palavra vem de mirabilia: aquilo que causa espanto, admiração, surpresa.
Antes mesmo de falar, o olhar infantil já se abre diante do mundo como um espetáculo incompreensível e ao mesmo tempo belo, instigante. Quando aprende a falar, repete sem cessar: “por quê?”. Duas palavras que transformam o assombro em linguagem e empurram o mundo para frente.
Hannah Arendt lembrava, em A condição humana, que o pensamento nasce justamente desse espanto: do instante em que algo nos interrompe e exige explicação. Para manter o mundo inteligível, perguntar é não se render ao silêncio ou ao automático; é insistir na busca, mesmo quando não há resposta clara.
O “por quê?”, nesse sentido, é o gesto inaugural da consciência: é na pergunta que começa o pensamento mais complexo, e, com ele, a possibilidade de transformar o mundo.
Os caminhos incríveis de um “por quê?”
Talvez nenhuma resposta nos baste, mas é a pergunta que move a história. Enquanto houver um “por quê?” vibrando em nós, haverá descobertas, sonhos e arte.
Não é simples curiosidade biológica, daquelas que leva o gato a farejar ou o macaco a testar uma ferramenta. O nosso “por quê?” nasce de um território mais vasto.
Somos capazes de simbolizar, criando mitos e palavras para o que não vemos. Temos racionalidade, que organiza hipóteses, mas também emotividade, que colore a pergunta com maravilha e angústia. Guardamos memória para ligar passado e futuro, imaginação para projetar mundos possíveis, autoconsciência para refletir sobre nós mesmos e uma vocação para a transcendência.
Essa combinação, razão, emoção, ética e sonho, transforma simples curiosidade em força criadora.
O “por quê?” que vira arte
Na arte, o “por quê?” ganha corpo, cor e jogo. É a pergunta que não pede apenas ciência, mas imagem e metáfora.
Desde as cavernas de Altamira até os muros contemporâneos, a dúvida vira desenho, música, teatro. Beethoven transformou o silêncio em som, perguntando por que criar mesmo sem ouvir. E Shakespeare, em Hamlet, fez ecoar o “ser ou não ser?”, talvez o “por quê?” mais famoso da história. Os Gêmeos, em São Paulo, devolveram poesia ao concreto com personagens amarelos que sussurram: por que a cidade não pode ser sonho?
Mas outros artistas fizeram do “por quê?” uma aventura ainda mais lúdica.
Salvador Dalí queria saber por que os sonhos não poderiam invadir a vigília. Certa vez, em Londres, apareceu com um escafandro na cabeça, dizendo que precisava “respirar as ideias do inconsciente”. Quase sufocou no meio da palestra. Ironia perfeita para quem vivia entre o absurdo e o genial.
Escher desenhou escadas que sobem e descem ao mesmo tempo, abrindo uma porta para o impossível.
Joan Miró e Paul Klee perguntavam de outro modo: por que o adulto não pode voltar a ver o mundo como criança? Suas linhas brincalhonas e cores vibrantes lembram que imaginar também é uma forma de pensar. Em Castelo e Sol, Klee transforma triângulos e quadrados em casas, torres e telhados. É o mundo como um brinquedo geométrico à espera de ser reinventado.
O mesmo espírito lúdico se ergue em escala monumental com Calder, que instalou seu Flamingo no centro de Chicago. Uma criatura vermelha de aço, imensa e leve, que parece perguntar: por que o espaço público deve ser apenas funcional, se pode também ser brincadeira e cor?
Lewis Carroll, em Alice no País das Maravilhas, levou o “por quê?” ao terreno do absurdo lógico. Em seu mundo, não apenas as respostas, mas as próprias perguntas se desmancham: por que não celebrar um “desaniversário”? O nonsense, afinal, é outra forma de perguntar.
Todos, cada um à sua maneira, transformaram o “por quê?” em destino: uma obsessão que é também a mais alta forma de fé no mistério.
Perguntar é existir
A arte sempre lembrará de que o “por quê?” não se esgota. Ele é motor, brincadeira, ferida, obsessão. E, no fundo, perguntar “por quê?” é mais do que um gesto intelectual. É uma forma de existir plenamente.
Primo Levi dizia que “não compreender é como estar cego”, e talvez seja por isso que seguimos tateando o mundo com perguntas, como crianças que descobrem o real com frescor, como Beethoven que rege sem ouvir, como Dalí que respira ideias com escafandro.
É possível que nunca encontremos todas as respostas. Mas, enquanto alguém, em qualquer canto do mundo, erguer os olhos e perguntar “por quê?”, haverá ciência, haverá arte, haverá futuro.
E se há algo que nos consola nesse impulso, talvez seja a lembrança de Ivan Lins: “A vida pode ser maravilhosa.” Sobretudo quando voltamos a nos maravilhar com o simples ato de viver.