Figura feminina percorreu uma longa e complexa trajetória de transformações sociais
por Marlene Polito
Publicado em 05/11/2024, às 11h56
Como pode uma aranha gigantesca, de longas pernas de aço e corpo de mármore frio, carregar o nome de Maman – 'mamãe'? Que relação poderia existir entre essa criatura, tão imensa e assustadora, e a figura protetora e terna de uma mãe?
A imponente escultura da aranha gigante é uma das obras mais famosas de Louise de Bourgeois, e é, de fato, impactante. Com seus 10 metros de altura, sua estrutura grandiosa domina o cenário, e aqueles que caminham ao seu redor ou passam por baixo de seus tentáculos, observando os ovos de mármore em sua barriga, experimentam uma conexão emocional e sensorial com a peça.
Maman (1999), de Louise Bourgeois
Ao transformar a aranha em ícone monumental da maternidade, Bourgeois sutilmente interpõe outros elementos, desconstruindo as obviedades sobre o significado de ser mãe. A obra Maman, de fato, revoluciona a ideia de maternidade e feminilidade indo além; evoca também o temor, o desconforto, desafiando o espectador a encarar a figura maternal de maneira não-idealizada.
A aranha é símbolo de proteção e de carinho, mas traz também em si um componente de força, independência, e até de ameaça, o que nos leva a refletir sobre as ambiguidades do papel feminino em que há uma mistura de afeto e empoderamento quase incômodo. Sua força, por isso, é muitas vezes mal compreendida e muitas vezes mal avaliada.
Nesse nosso passeio com mulheres, Maman não deixa de ser um significativo símbolo contemporâneo ao representar a mulher como uma figura não-convencional e multifacetada, particularmente em nosso tempo, em que os conceitos tradicionais de feminilidade e de maternidade estão sendo reformulados sob uma perspectiva mais desafiadora e abrangente.
Mudanças no papel da mulher e reflexos na arte
Tendo Maman como ponto de partida, voltemos no tempo para descobrir as camadas que moldaram a construção e a percepção da mulher ao longo da história.
A mulher percorreu uma longa e complexa trajetória de transformações sociais. De figuras divinizadas em cultos ancestrais – Ísis, no Egito, Ishtar, na Mesopotâmia, Perséfone, na Grécia Antiga – até papéis mais restritos na Idade Média – mulheres santas e mártires, e a posterior redescoberta da mulher como protagonista em tempos modernos, essa trajetória influenciou não só a participação feminina em seu dia a dia, mas também as diversas artes que representam esses papéis.
As artes foram, muitas vezes, espelhos de uma visão patriarcal, mas, com o tempo e as diversas transformações que tiveram lugar na sociedade, se tornaram um espaço para que as mulheres fossem retratadas e se expressassem com maior autenticidade e profundidade. As representações artísticas acompanharam – e, em alguns casos, desafiaram – essas transformações.
Inicialmente retratadas como musas e símbolos idealizados, as mulheres começaram a ser representadas com mais nuances e complexidade a partir do Renascimento e, de forma mais desafiadora, na era moderna e contemporânea. Isso revela não apenas uma mudança no papel feminino, mas uma busca por liberdade de expressão e reconhecimento.
Olympia, de Édouard Mane
Olympia (1863), de Édouard Manet
Em nossa linha cronológica, encontramos Olympia (1863) de Édouard Manet, uma figura que desafia diretamente os padrões de sua época.
Manet provoca o público ao retratar uma mulher ciente de sua própria sensualidade. Olympia se apresenta com uma autonomia silenciosa, mas impactante, encarando o espectador de igual para igual. É empoderada, independente e consciente de seu corpo – uma ruptura que Manet insere na arte ao retratar a mulher não como musa idealizada, mas como sujeito consciente de si mesma.
A obra, por isso, não deixa de revelar os preconceitos sobre as mulheres independentes e a sexualidade feminina na época.
As Três Idades da Mulher, de Gustav Klimt
As Três Idades da Mulher (1905), de Gustav Klimt
Klimt oferece um olhar poético sobre a feminilidade como uma jornada de múltiplas fases. Com sua sensibilidade, a obra questiona os valores associados à beleza, juventude e maturidade, bem como a vulnerabilidade de cada estágio. Permite um discurso sobre a visão da mulher que envelhece, muitas vezes marginalizada nas sociedades modernas, e a aceitação da mulher como um ser em constante transformação.
Valoriza o envelhecimento e a multiplicidade feminina, uma visão rara na arte de sua época.
Autorretrato com Colar de Espinhos, de Frida Kahlo
Autorretrato com Colar de Espinhos (1940), de Frida Kahlo
Frida é uma representação da feminilidade com todos os seus paradoxos e desafios. Seus autorretratos refletem uma luta contra padrões de beleza e papéis de gênero, além de discutir sofrimento e autossuficiência.
Em Autorretrato com Colar de Espinhos (1940), ela integra símbolos da natureza e da dor física e emocional, sendo uma crítica aberta aos valores patriarcais e à visão da mulher na sociedade do século XX. Em uma narrativa introspectiva, Frida Kahlo explora uma feminilidade cheia de dor e resistência, muito além das convenções da época.
Um passeio que prossegue
Este passeio através das representações femininas na arte nos leva a refletir sobre a transformação da mulher – de musa idealizada a protagonista de sua própria história, de um símbolo de passividade a uma figura de força e complexidade. Cada obra aqui explorada – de Olympia de Manet à Maman de Bourgeois – revela traços de feminilidade que desafiam os estereótipos e expõem as nuances do papel da mulher na sociedade.
Ao longo dos séculos, as mulheres na arte deixaram de ser meras figuras contemplativas para se tornarem símbolos de autonomia, resistência e transformação. Bourgeois, ao transformar a maternidade em uma aranha imponente, sintetiza todos esses traços: a força, o cuidado, a complexidade e, por vezes, o temor que acompanham o feminino.
Assim, Maman não é apenas uma escultura, mas o símbolo concreto de uma evolução histórica, um convite a enxergar a figura feminina em sua profundidade e desafio: a mulher é, e sempre foi, uma construção complexa e multifacetada, que transcende o tempo e continua a inspirar novas perspectivas.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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