Cultura

As lobas de Pompeia

“Não tema a mulher que uiva. Tema a que silencia.” – Anônima de Pompeia

De Pompeia ao presente, ela não pediu licença. Apenas permaneceu - Imagem: Reprodução
De Pompeia ao presente, ela não pediu licença. Apenas permaneceu - Imagem: Reprodução
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 17/06/2025, às 11h02


Não sei se foi o silêncio, o cheiro da pedra antiga ou o calor que parecia emanar das próprias ruínas, mas havia algo de sagrado naquele lugar. Cada rua era um eco, cada parede sussurrava histórias que o tempo tentou calar com cinzas. Mas não calou.

Pompeia. A cidade adormecida ainda pulsa. Os afrescos preservados nos muros das casas, os mosaicos, as inscrições, os objetos do cotidiano, tudo está ali, como se aguardasse nossa chegada. E mais do que isso: desafiam a ideia de que o passado é cinza. Nada ali é morto. As figuras femininas dançam, repousam, tocam instrumentos, olham de volta. Não há submissão em seus gestos. Há poder.

Foi numa dessas andanças, entre uma domus, casa romana com seus mosaicos e pátios internos, e um thermopolium, espécie de lanchonete da época, onde se serviam comidas e vinhos quentes, que ouvi a expressão: as lobas de Pompeia. Contavam que, nas noites antigas, algumas mulheres soltavam uivos para chamar atenção. Era um sussurro de lenda, desses que resistem ao tempo como pequenos enigmas murmurados entre ruínas.

Sorri, intrigada. O que seria esse uivo? Um chamado à luxúria ou um grito de liberdade? Preferi pensar nessas lobas não como mulheres caídas, mas como fêmeas indomadas. E comecei a enxergá-las por toda parte, ali mesmo, nas paredes de Pompeia: na Vênus que surge do mar pintada em uma alcova íntima; na Bacante em êxtase num painel exuberante; na sacerdotisa de olhos serenos retratada com um cálice de ouro nas mãos. Todas obras escavadas ali, naquele solo suspenso entre tragédia e eternidade.

Pintada no muro, mas nunca contida. Ela atravessou as cinzas com os olhos abertos.

Pintada no muro, mas nunca contida. Ela atravessou as cinzas com os olhos abertos

E foi aí que me dei conta: essas mulheres não apenas sobreviveram à tragédia de 79 d.C. Elas escaparam à domesticação da história. Continuam ali, fortes, belas, livres, como as verdadeiras lobas que são.

Mas talvez essa não seja a primeira loba a nos olhar da história. Muito antes da lava encobrir Pompeia, uma outra fêmea feroz já havia marcado o imaginário romano: a loba que, segundo a lenda, amamentou Rômulo e Remo, os gêmeos fundadores de Roma. Não era uma mulher. Era uma fera. Mas uma fera que nutre.

Escultura da Loba Capitolina, representando a loba que amamenta  Rômulo e Remo. Ela não guardava um império. Guardava um instinto

Escultura da Loba Capitolina, representando a loba que amamenta Rômulo e Remo. Ela não guardava um império. Guardava um instinto.

Essa imagem atravessou séculos como símbolo de origem e potência dos romanos. Ao alimentar os futuros reis, a loba não apenas salva, ela funda. Dá início à civilização que dominará o mundo. E o faz com instinto, coragem, selvageria e cuidado. A loba, aqui, não é pecado nem escândalo. É matriz. É mãe do império.

Pensar nas mulheres de Pompeia sob esse signo transforma tudo. Elas não estão ali apenas como ornamento ou fantasia. São descendentes míticas dessa loba inaugural. Carregam no corpo e no gesto uma herança que é ao mesmo tempo sensual e civilizatória, instintiva e simbólica. Seus olhos nos murais não pedem desculpas. Eles nos encaram. Eles nos desestabilizam.

E se escutarmos com atenção, talvez consigamos ouvir, não um uivo de súplica, mas o som firme de quem, mesmo soterrada por cinzas, se recusa a desaparecer.

A loba ressurgiria séculos depois, não nos muros de uma vila romana, mas nos outdoors e vitrines do final do século XX. A publicidade brasileira a reinventou com um toque ousado: em 1988, a marca Lupo lançou a “meia da Loba”. A campanha foi um sucesso estrondoso. Mas mais do que uma peça de vestuário, vendia-se ali uma ideia: a mulher independente, sensual, segura de si. Aquela que, como a loba mítica, não precisa ser domesticada para ser admirada.

A loba vestiu salto e foi às ruas. E ninguém a deteve

A loba vestiu salto e foi às ruas. E ninguém a deteve

E não foi só na publicidade. A loba invadiu também a cultura pop, uivando nos palcos com Shakira, aparecendo em músicas, filmes, desfiles. Tornou-se arquétipo: a mulher que não pede licença, que anda à noite sem medo, que conhece seus desejos. Às vezes foi mal interpretada, claro. Tentaram reduzi-la a fetiche, a caricatura, a ameaça. Mas a loba verdadeira escapa sempre. É astuta, ágil. E sabe se reinventar.

Nesse espelho da modernidade, as mulheres de Pompeia continuam a nos observar. Aquelas figuras pintadas nas paredes, ora nuas, ora vestidas com túnicas esvoaçantes, são irmãs mais velhas dessas lobas urbanas. Todas desafiam os papéis impostos. Todas guardam, em algum lugar do olhar, um segredo: o de que liberdade e beleza não se opõem. Se alimentam.

Elas estão por toda parte. Não se escondem. Nem se explicam.
Talvez o mundo tenha tentado enterrá-las com cinzas, decretar seu silêncio ou enquadrá-las em molduras. Mas a loba, por natureza, escapa. E uiva.

Hoje, seu uivo não ecoa apenas nas noites italianas. Vibra nas escolhas corajosas, na liberdade do corpo, na recusa em ser domada. É o som ancestral de uma força que jamais se apagou, apenas esperou, com olhos semicerrados, o momento certo de voltar a ser ouvida.