Até que ponto ocultar as imperfeições nos torna pessoas melhores?
por Marlene Polito
Publicado em 15/10/2024, às 13h50
Será que “parecer” perfeito pode ser o caminho para uma vida mais plena? Até que ponto ocultar as imperfeições nos torna pessoas melhores? E se as imperfeições não fossem algo a ser escondido, mas sim exaltado como parte de quem somos?
Kintsugi
No Kintsugi Japan Art Studio, em Tóquio, a exposição traz vinte e cinco peças premiadas internacionalmente. São realmente maravilhosas!
Kintsugi é a técnica centenária japonesa de reparar peças de cerâmica quebradas, trabalhando com ligas preciosas – prata, ouro ou platina –, transformando-as em novas peças, e com seu valor intrínseco, único.
Sua origem é bem interessante. Segundo a lenda, no século XV, um comandante do exército japonês tinha uma peça de cerâmica chinesa de que gostava muito. Depois de certo tempo de uso, ela se quebrou, e ele, desejando recuperá-la, enviou-a de volta para a China para que a consertassem.
Quando a peça chegou, para seu desgosto, as partes quebradas haviam sido unidas com grampos de metal nada bonitos. Além disso, não segurava mais o líquido em seu interior.
O comandante pediu, então, a seus artesãos que encontrassem uma forma de restaurar a peça. Foi assim que surgiu essa técnica, cuja beleza única rapidamente conquistou o gosto popular, tornando-se amplamente utilizada.
A arte do Kintsugi é trabalho minucioso, rico na precisão de anexar partes, de restaurar fissuras com a mínima sobreposição de material em finíssimos traços dourados, brilhantes – uma mesma peça, agregada com a valorização das marcas de seu desgaste e da sua imperfeição, se transforma, assim, em obra de arte até mais valiosa.
No lugar da imperfeição, de algo que se quebrou, há a valorização dos defeitos que passam a ser uma parte fundamental da beleza da peça.
Uma metáfora para a vida
Penso em como o Kintsugi nos oferece uma profunda metáfora para a vida.
Essa luta interna para aceitar nossas próprias falhas é lindamente delineada por Fernando Pessoa em seu 'Poema em Linha Reta'.
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! [ ... ]
Arre, estou farto de semideuses! [ ... ]
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
O autor define de forma genial como somos pressionados a parecer sempre perfeitos, sensatos, fortes em um mundo que exige de nós uma imagem sem erros, infalível. Tememos expor nossas imperfeições, num faz-de-conta em que somos heróis de uma fábula mal escrita e mal-ajambrada.
A vida, entretanto, não nos propõe um caminho na rigidez estreita de uma linha reta, pois o não-linear, o imprevisível, a incerteza e até os desvios e as falhas fazem parte da natureza humana.
O ouro, que no Kintsugi une as partes das peças quebradas, nos indica que o poder da resiliência, a capacidade de transformação na incompletude, é precioso: é possível não apenas superar dificuldades, deficiências e adversidades, mas integrá-las à nossa jornada pessoal de forma significativa e verdadeira.
Aceitar a imperfeição como contingência natural da condição humana significa, de certa forma, aceitar que somos todos uma obra em construção, em constante processo de lapidação pelos desacertos e desafios que enfrentamos.
Esses, por isso, não devem ser fonte de angústia e de vergonha, mas símbolos de superação em uma história de vida que, afinal, nos torna únicos e autênticos.
Uma metáfora para outra forma de arte
Assim como o Kintsugi transforma o ‘quebrado’ em beleza, Michelangelo descreve o ato de esculpir como um processo de libertação, não de criação:
“Em cada bloco de mármore vejo uma estátua […]. Tenho apenas de desbastar as paredes brutas que aprisionam a adorável aparição para revelá-la a outros olhos como os meus já a veem.”
Em sua obra “Pietá”, ele nos mostra como a dor humana pode vir ressignificada em uma forma maior de arte.
Maria segura o corpo de seu filho, Jesus; e a dor se converte em algo sublime, incrivelmente belo. O artista supera a dureza fria do mármore e cria de forma pungente o sofrimento de uma mãe e a fragilidade de um corpo tão sofridamente humano. Há dor; e certamente há beleza. Mas é uma transmutação do sofrimento em beleza, da dor em serenidade.
A expressão de Maria é de aceitação profunda e de paz misericordiosa. Não existe desespero, pois pertence a outra ordem de existência – de espiritualidade e elevação. Vai além do sofrimento humano, e a ideia da morte se recria sob uma nova dimensão: é símbolo máximo de redenção e ao mesmo tempo de beleza transcendente.
Uma palavra final
Nos dias atuais, em que há verdadeira obsessão pela busca da perfeição no que se refere a quem somos e de como somos vistos no mundo, o reconhecimento de nossas fragilidades e imperfeições pode nos ajudar a alcançar uma “transmutação” necessária – ressignificar o que parece imperfeito, inadequado, tendo em vista a valorização da nossa autenticidade.
A responsabilidade pelo que somos, em todos os sentidos, é um direito que nos pertence por natureza. Talvez nem sempre nos sintamos felizes com isso. No entanto, é a única e absoluta garantia de que cada um de nós tem o poder de se transformar na pessoa que deseja ser. Imperfeito! Haveria um novo olhar sobre nossas falhas?
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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