Cultura

Entre luz e sombras

“A luz cria a forma, mas é a sombra que a revela.” Inscrição no ateliê de um pintor barroco

Nude, Campden Hill, London (1949), de Brandt - Imagem: Reprodução
Nude, Campden Hill, London (1949), de Brandt - Imagem: Reprodução
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 21/10/2025, às 10h40


Uma teia particular de sentidos

Desde que o homem aprendeu a olhar, a luz e a sombra travam em sua alma um diálogo silencioso. Há quem busque a luz como se nela morasse a verdade absoluta. Outros preferem o abrigo da sombra, onde a claridade não fere os olhos nem expõe o que se deseja ocultar.

Desde o início dos tempos, ambas o acompanham como duas faces do mesmo enigma. A claridade aquece, guia, protege, mas também expõe. A sombra, ao contrário, oculta e amedronta, mas oferece refúgio e repouso.

Entre o brilho do fogo que afugentava as feras e o escuro da caverna onde nasciam os mitos, o homem aprendeu que viver é atravessar clarões e silêncios. E talvez a essência da vida esteja nesse intervalo, no entremeio em que a luz hesita e a sombra se insinua.

É desse embate ancestral que nasceram as imagens, e delas, a arte.

A revelação

Na pintura de Caravaggio, o contraste é vida. Suas figuras emergem do escuro como se a criação ainda estivesse em andamento, e Deus, indeciso, experimentasse a potência do claro e do escuro antes de definir o mundo. O chiaroscuro caravaggesco não apenas ilumina, dramatiza.

A claridade toca o rosto de Mateus no instante da revelação. O milagre não acontece no céu, mas no corpo iluminado por um lampejo. A luz decide; a sombra, se submete e testemunha.

A Vocação de São Mateus (1599–1600), de Caravaggio
A Vocação de São Mateus (1599–1600), de Caravaggio

A serenidade

Já em Vermeer, é uma luz íntima, tão silenciosa que parece feita de pensamento. Ela não grita nem salva, apenas existe, com a serenidade das horas.

Em A Leiteira, ela repousa sobre o gesto simples de uma mulher que verte o leite. Não dramatiza, acolhe. Vermeer transforma o cotidiano em eternidade, como se o tempo tivesse parado para respirar.

Ele ensina que a beleza não está no extraordinário, mas no instante em que o comum é visto com atenção. É a luz da consciência serena, que revela o mundo sem feri-lo.

A Leiteira (1658–1660), de Vermeer
A Leiteira (1658–1660), de Vermeer

A transfiguração

Esses artistas compreenderam que a sombra não é ausência de luz, mas sua memória. Toda claridade carrega em si o vestígio do que excluiu, como o dia que, ao nascer, já anuncia a saudade da noite.

Séculos depois, Francis Bacon, o pintor do século XX, mergulharia nessa zona de conflito. Em suas telas, o corpo se distorce como se a dor tivesse forma e a luz, culpa.

Estudo do retrato do Papa Inocêncio X de Velasquez, de Francis Bacon (1953)
Estudo do retrato do Papa Inocêncio X de Velasquez, de Francis Bacon (1953)

A arte, então, parece compreender que o excesso de luz também cega.

A invenção

Essa inversão do olhar ganha novo sentido com Man Ray, que fez da luz um jogo de invenção e ironia.

Em Le Violon d’Ingres, o fotógrafo transforma o corpo de uma mulher em instrumento musical. O título, trocadilho com o pintor Ingres e a expressão francesa violon d’Ingres (paixão paralela), revela a ironia e a ousadia do surrealismo.

Aqui, o corpo é música e metáfora: a luz o toca, a sombra o compõe. A sensualidade deixa de ser confissão para tornar-se forma.

Com Man Ray, o olhar cria o que ilumina, e a sombra, antes rival, torna-se cumplicidade.

Le Violon d’Ingres (1924), de Man Ray
Le Violon d’Ingres (1924), de Man Ray

A hipervisibilidade

Hoje, vivemos sob o império da luz sem pausa. Cada gesto, cada rosto, cada pensamento precisa ser iluminado, compartilhado, postado.

Mas, como advertiu Byung-Chul Han, essa exposição excessiva eliminou o espaço interior, o silêncio e a sombra, e com eles, o mistério. O excesso de luz dissolve o espaço da imaginação, e o olhar, saturado, já não distingue o essencial.

Susan Sontag, em Diante da dor do outro, mostrou que a exposição constante das imagens de sofrimento transforma o olhar em hábito. A empatia cede lugar à anestesia, ao consumo meramente de um espetáculo.

Nessa inversão, a sombra volta a ser necessária. É ela que devolve o pudor, o silêncio, a distância que preserva o sentido do que é sagrado.

A interioridade

A fotografia talvez tenha sido a arte que melhor traduziu esse dilema. Desde Man Ray e Bill Brandt, sabemos que a sombra não é defeito, mas composição; é ela quem dá profundidade ao retrato.

Em Nude, Campden Hill, London (1949), Brandt mostra o rosto e o braço de uma mulher quase dissolvidos no contraste extremo entre o branco e o negro. O corpo parece emergir da escuridão e, ao mesmo tempo, ser por ela engolido.

A luz, aqui, não descreve, esculpe. Ela cava o espaço e transforma o corpo em paisagem, deixando o visível à beira do invisível. É o ponto culminante da trajetória que começou com Caravaggio: a luz torna-se, enfim, interior.

O limiar

O fascínio do mundo nasce do contraste. Sem sombra, a luz seria banal; sem luz, a sombra perderia relevância. É na penumbra, nessa zona de hesitação, que habitam a beleza, o desejo e a arte.

Entre luz e sombras, o homem continua tateando o próprio rosto à procura de sentido. Talvez o encontre quando aceitar que a verdade, como o amanhecer, não é plena: é apenas o instante em que o escuro começa a respirar luz.

Somos feitos de luzes que hesitam e sombras que resistem.