“A luz cria a forma, mas é a sombra que a revela.” Inscrição no ateliê de um pintor barroco
por Marlene Polito
Publicado em 21/10/2025, às 10h40
Uma teia particular de sentidos
Desde que o homem aprendeu a olhar, a luz e a sombra travam em sua alma um diálogo silencioso. Há quem busque a luz como se nela morasse a verdade absoluta. Outros preferem o abrigo da sombra, onde a claridade não fere os olhos nem expõe o que se deseja ocultar.
Desde o início dos tempos, ambas o acompanham como duas faces do mesmo enigma. A claridade aquece, guia, protege, mas também expõe. A sombra, ao contrário, oculta e amedronta, mas oferece refúgio e repouso.
Entre o brilho do fogo que afugentava as feras e o escuro da caverna onde nasciam os mitos, o homem aprendeu que viver é atravessar clarões e silêncios. E talvez a essência da vida esteja nesse intervalo, no entremeio em que a luz hesita e a sombra se insinua.
É desse embate ancestral que nasceram as imagens, e delas, a arte.
A revelação
Na pintura de Caravaggio, o contraste é vida. Suas figuras emergem do escuro como se a criação ainda estivesse em andamento, e Deus, indeciso, experimentasse a potência do claro e do escuro antes de definir o mundo. O chiaroscuro caravaggesco não apenas ilumina, dramatiza.
A claridade toca o rosto de Mateus no instante da revelação. O milagre não acontece no céu, mas no corpo iluminado por um lampejo. A luz decide; a sombra, se submete e testemunha.
A serenidade
Já em Vermeer, é uma luz íntima, tão silenciosa que parece feita de pensamento. Ela não grita nem salva, apenas existe, com a serenidade das horas.
Em A Leiteira, ela repousa sobre o gesto simples de uma mulher que verte o leite. Não dramatiza, acolhe. Vermeer transforma o cotidiano em eternidade, como se o tempo tivesse parado para respirar.
Ele ensina que a beleza não está no extraordinário, mas no instante em que o comum é visto com atenção. É a luz da consciência serena, que revela o mundo sem feri-lo.
A transfiguração
Esses artistas compreenderam que a sombra não é ausência de luz, mas sua memória. Toda claridade carrega em si o vestígio do que excluiu, como o dia que, ao nascer, já anuncia a saudade da noite.
Séculos depois, Francis Bacon, o pintor do século XX, mergulharia nessa zona de conflito. Em suas telas, o corpo se distorce como se a dor tivesse forma e a luz, culpa.
A arte, então, parece compreender que o excesso de luz também cega.
A invenção
Essa inversão do olhar ganha novo sentido com Man Ray, que fez da luz um jogo de invenção e ironia.
Em Le Violon d’Ingres, o fotógrafo transforma o corpo de uma mulher em instrumento musical. O título, trocadilho com o pintor Ingres e a expressão francesa violon d’Ingres (paixão paralela), revela a ironia e a ousadia do surrealismo.
Aqui, o corpo é música e metáfora: a luz o toca, a sombra o compõe. A sensualidade deixa de ser confissão para tornar-se forma.
Com Man Ray, o olhar cria o que ilumina, e a sombra, antes rival, torna-se cumplicidade.
A hipervisibilidade
Hoje, vivemos sob o império da luz sem pausa. Cada gesto, cada rosto, cada pensamento precisa ser iluminado, compartilhado, postado.
Mas, como advertiu Byung-Chul Han, essa exposição excessiva eliminou o espaço interior, o silêncio e a sombra, e com eles, o mistério. O excesso de luz dissolve o espaço da imaginação, e o olhar, saturado, já não distingue o essencial.
Susan Sontag, em Diante da dor do outro, mostrou que a exposição constante das imagens de sofrimento transforma o olhar em hábito. A empatia cede lugar à anestesia, ao consumo meramente de um espetáculo.
Nessa inversão, a sombra volta a ser necessária. É ela que devolve o pudor, o silêncio, a distância que preserva o sentido do que é sagrado.
A interioridade
A fotografia talvez tenha sido a arte que melhor traduziu esse dilema. Desde Man Ray e Bill Brandt, sabemos que a sombra não é defeito, mas composição; é ela quem dá profundidade ao retrato.
Em Nude, Campden Hill, London (1949), Brandt mostra o rosto e o braço de uma mulher quase dissolvidos no contraste extremo entre o branco e o negro. O corpo parece emergir da escuridão e, ao mesmo tempo, ser por ela engolido.
A luz, aqui, não descreve, esculpe. Ela cava o espaço e transforma o corpo em paisagem, deixando o visível à beira do invisível. É o ponto culminante da trajetória que começou com Caravaggio: a luz torna-se, enfim, interior.
O limiar
O fascínio do mundo nasce do contraste. Sem sombra, a luz seria banal; sem luz, a sombra perderia relevância. É na penumbra, nessa zona de hesitação, que habitam a beleza, o desejo e a arte.
Entre luz e sombras, o homem continua tateando o próprio rosto à procura de sentido. Talvez o encontre quando aceitar que a verdade, como o amanhecer, não é plena: é apenas o instante em que o escuro começa a respirar luz.
Somos feitos de luzes que hesitam e sombras que resistem.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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