Toda imagem de uma mãe é, no fundo, um espelho do que esperamos do amor
por Marlene Polito
Publicado em 15/07/2025, às 21h34
A mãe antes da mãe
Antes mesmo de Maria e Jesus, de Giotto e Rafael, já havia uma mãe e seu filho formando um dos ícones mais poderosos da história humana. Isis amamentando Hórus. A deusa que reconstrói o corpo dilacerado do marido, Osíris, e protege o filho, Hórus, de Seth, a fúria do deserto. Nessa imagem antiga, plena de ternura e força, nasce a primeira Madona.
Isis não é apenas uma deusa-mãe. Ela é arquétipo. Ao contemplarmos uma Madona renascentista, talvez vejamos mais do que imaginamos: ecos egípcios em telas italianas.
Isis amamentando Hórus
Antes de Maria, já havia Isis. Mãe, deusa, colo eterno
Embora Isis seja a matriz mais evidente da Madona cristã, não foi a única. O Ocidente é uma tapeçaria de arquétipos femininos: Cibele, a mãe das montanhas e da natureza selvagem; Deméter, marcada pela perda e reencontro da filha; Hera, guardiã do matrimônio e da ordem familiar. Todas, figuras da tradição greco-romana que deixaram suas marcas.
A Madona, por isso, carrega traços sobrepostos de diferentes épocas, crenças e valores, sem apagar totalmente o que veio antes.
A Madona cristã como representação da arte, da fé e da moral
Com o cristianismo, Maria se torna não só mãe de Cristo, mas mãe de todos os homens. Surge a Madona, representação que dominará entre os séculos XIII e XVII. Rafael, Leonardo, Botticelli imortalizaram sua doçura e espiritualidade.
Mas essa mãe não é só religiosa: é um ideal moral. Pureza, submissão, sacrifício.
Entre a auréola e a sombra, a Madona no mundo moderno
Depois do esplendor renascentista, a imagem da Madona oscila entre devoção, formalismo e questionamento. No Barroco, ela ainda reina, mas já não é só doçura. É a mãe que intercede, chora, suplica. As Madonas de Murillo e Rubens são gloriosas, mas já não mais tão íntimas.
Com o Iluminismo e o avanço da razão, a arte se afasta do religioso. A Madona começa a desaparecer das telas ou a perder sua aura. A maternidade passa a ser tratada de forma mais laica. No século XIX, artistas ainda exploram a figura materna, mas já sem os códigos da santidade.
No século XX, com a psicanálise em ascensão e os papéis sociais em transformação, a maternidade se vê atravessada pela angústia existencial. Modigliani desliza entre sonho e presença. Picasso expõe conflitos internos. Klimt a cobre de erotismo. Munch revela o desespero.
Mães sem auréola, Madonas contemporâneas
A Madona contemporânea já não veste azul celeste. Ela é multitarefa: trabalha, ama, tropeça, se sobrecarrega. Leva nos ombros não só seus filhos, mas também a culpa, a cobrança, a exigência de perfeição.
Na publicidade, surgem Madonas sorridentes com filhos no colo e um sabão em pó na mão. A maternidade vira argumento de venda. O bebê, símbolo universal de afeto, acaba por se transformar em acessório simbólico. O afeto vira estética. Vende-se o ideal inalcançável da mãe plena e feliz.
Hoje, a maternidade aparece na arte e na vida como refúgio, mas também como prisão. Como um elo de amor e, às vezes, de exaustão.
E ainda assim, mesmo nas condições mais adversas, há mulheres que conseguem preservar o gesto primeiro: embalar o filho com ternura, protegê-lo com o corpo, velá-lo com os olhos.
Imagem de mãe e filho nas ruas de Old Delhi
A auréola se partiu, mas o gesto permanece
Os reborns e as mães do simulacro
É nesse cenário que surgem os reborns, bonecos hiper-realistas que imitam bebês com precisão. Seu mundo é ambíguo e desconcertante. Em parte, arte. Em parte, terapia. Acolhem perdas, vazios, desejos. Há quem os embale, os vista, os alimente. Madonas do simulacro. Mães de filhos que não crescem.
É uma tentativa de eternizar o instante da maternidade ideal, antes que o bebê cresça, chore demais ou escape para a vida real. Um laço afetivo que se quer manter fora do tempo e dos problemas.
Madona renascentista com o Menino Jesus substituído por um reborn hiper-realista
O colo persiste, mesmo que a vida não esteja ali
Ah… essas Madonas
Talvez o que chamamos de Madona seja apenas a superfície visível de um desejo antigo: que o amor, em sua forma mais absoluta, pudesse ser contido entre dois braços. Que não fugisse, não crescesse, não se partisse.
Da deusa egípcia à mulher contemporânea, elas seguem tentando. Reinventam o gesto, religam os símbolos, encenam novos colos. Às vezes sagradas, às vezes frágeis, às vezes feitas de silêncio, ou de silicone. A maternidade, antes ligada ao sacrifício, agora muitas vezes se transforma em performance de perfeição. A Madona do Instagram é sempre bonita, com o sorriso no lugar certo e o bebê no colo.
Todas, de algum modo, porém, repetem o mesmo gesto inaugural: sustentar a vida no limiar entre a presença e a ausência.
Talvez a Madona nunca tenha sido apenas uma imagem, mas uma pergunta. E nós seguimos olhando, não para encontrar uma resposta, mas para nos reconhecermos nesse espelho que acolhe, guarda e nos devolve, no fim, ao primeiro afeto.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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