Cultura

Não se preocupe em ir para o céu; você já está nele

Através da arte e da ciência, somos chamados a prestar atenção ao que muitas vezes se torna invisível em nosso cotidiano

Noite estrelada, de Vincent Van Gogh (1889) - Essa obra, talvez, seja a mais íntima representação do espanto humano diante do céu - Imagem: Reprodução
Noite estrelada, de Vincent Van Gogh (1889) - Essa obra, talvez, seja a mais íntima representação do espanto humano diante do céu - Imagem: Reprodução
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 28/10/2025, às 11h01


O despertar do olhar

Em A Natural History of the Senses, Diane Ackerman reflete sobre as percepções que se perdem na velocidade dos nossos dias. Ela nos lembra que ver, ouvir, tocar, cheirar e saborear não são apenas formas de sentir, mas também de pensar o mundo.

Entre os cinco sentidos, a visão ocupa um lugar privilegiado. Para tocar ou provar algo, é preciso proximidade; o olfato e a audição permitem certa distância. Mas a visão vai além. Atravessa espaços e tempos, captando o mundo em fragmentos de luz.

Talvez o pensamento abstrato tenha nascido exatamente desse esforço do olhar para compreender o que via, como se pensar fosse uma extensão do ver.

O olhar, contudo, é volúvel. Fascina-se com o novo, mas se acostuma depressa, mesmo diante do trágico ou do sublime. O que é constante, paradoxalmente, desaparece.

A ciência e a arte, como diz Ackerman, nos sacodem: “Quer fazer o favor de prestar atenção?” São elas que reacendem a luz do que se tornara transparente.

“Red Canna” (1924), de Georgia O’Keeffe.
O’Keeffe ensina o olhar a deter-se no detalhe. O infinito mora no particular. “I paint flowers so they won’t be ignored.” - “Red Canna” (1924), de Georgia O’Keeffe

O céu começa na terra

E então Ackerman nos oferece uma imagem inesperada, quase uma revelação:

“Olhe para os seus pés”, diz ela. “Você está de pé no céu.”

Costumamos olhar para cima, mas o céu começa na terra. O ar que respiramos é parte dele. Neste instante, inalamos partículas que um dia circularam nos pulmões de Leonardo da Vinci, Shakespeare e Colette.

Essa ideia vertiginosa dissolve fronteiras: não há um “acima” e um “abaixo”, apenas um grande corpo fluido que nos envolve. Só a gravidade, teimosa, mantém o céu preso à terra.

E talvez por isso o céu seja, desde o início, o espelho mais fiel da condição humana: vasto, mutável, inalcançável.

Foi nele que os povos projetaram seus deuses, suas memórias e esperanças. Um céu que muda de nome, de forma e de sentido, mas nunca deixa de nos fascinar.

O céu que os povos desenharam

Para os povos originários, o céu é mapa, calendário, morada dos ancestrais. Cada grupo de estrelas guarda um mito, uma forma de explicar o que é eterno a partir do visível.

Os gregos viam em Órion, o caçador transformado em estrelas, a lembrança de um amor impossível. Dos babilônios, herdaram o zodíaco, um mapa do firmamento que transformava o céu em espelho da vida. Assim nasceu o horóscopo, não como superstição, mas como tentativa de compreender os ritmos do universo.

Na pintura chinesa, o céu se expressa pelo vazio, o liubai, espaço de respiro entre os traços, onde circula o qi, a energia vital que liga todas as coisas.

“Observando os veados à beira do riacho sob os pinheiros”, de Ma Yuan (c.1200)
Entre o cheio e o vazio, o olhar encontra o infinito. - “Observando os veados à beira do riacho sob os pinheiros”, de Ma Yuan (c.1200)

Nos haicais japoneses, o céu é o espelho do tempo, aquilo que passa e, ao mesmo tempo, permanece.

Cada cultura desenhou o céu à sua maneira, mas todas intuíram o mesmo: o céu é linguagem. E olhar para ele é ler o mundo.

O mito da união primordial

Os antigos contaram que céu e terra já foram um só corpo. Na Grécia, Urano e Gaia se uniam todas as noites, até que Cronos, com sua foice, abriu entre eles o espaço do mundo, o alto e o baixo, o dia e a noite.

No Egito, a deusa Nut, corpo de estrelas, se arqueava sobre Geb, a terra silenciosa, sustentada por Shu, o sopro do ar.

Assim nascia o equilíbrio entre matéria e espírito: o céu e a terra, separados, mas inseparáveis.

Papiro egípcio de Nut arqueada sobre Geb, com Shu sustentando o firmamento (Museu do Cairo)
Papiro egípcio de Nut arqueada sobre Geb, com Shu sustentando o firmamento (Museu do Cairo)

O céu que a tecnologia ocupou

Hoje, o céu é território. Satélites cruzam suas veias, drones o vigiam, constelações artificiais o cartografam. O que antes era domínio dos deuses tornou-se campo de disputa entre corporações e nações.

O céu tornou-se invisível não por constância, mas por excesso. A poluição luminosa apaga as estrelas nas cidades e, com elas, parte da imaginação. Há mais claridade, mas menos visão.

O que se perde não é apenas o céu visível, é o espanto, a pausa, a vertigem do infinito. Olhar para cima é, cada vez mais, um gesto de resistência.

O pão dos olhos

Talvez o que nos fascine no céu não seja o mistério do infinito, mas a lembrança de que fazemos parte dele.

Estamos imersos na mesma substância que envolve as estrelas, feitos de olhar, de ar, de espanto.

O céu não é apenas o que está acima, mas o que nos atravessa, nos pulmões, nos sonhos, nas palavras que escolhemos para nomear o indizível.

Olhar para o céu é mais do que contemplar. É reconhecer que há algo maior que nos envolve e nos habita. Ele é origem e destino, é mapa e espelho, é silêncio e pergunta.

Se o céu é, como dizia Emerson, “the daily bread of the eyes”, o pão de cada dia dos olhos, então olhar é um gesto de comunhão, não apenas com o mundo, mas com aquilo que em nós deseja compreender, pertencer, transcender.

Olhar, enfim, é o gesto que nos lembra quem somos: meros fragmentos do céu em busca de sentido.