Como um gesto tão íntimo se tornou símbolo de amor e arte ao longo dos séculos?
por Marlene Polito
Publicado em 10/09/2024, às 11h11
São oito e vinte da manhã. Sentada em um dos bancos do aeroporto, aguardo o anúncio para embarcar. Dia bonito, ensolarado, que de repente se tinge de cinza e se faz bruscamente carrancudo.
Olho o menininho de um ano e pouco que, inquieto, corre, tropeça nas próprias perninhas e consegue se equilibrar com o auxílio da mãe que o socorre. Feliz, olha para ela sorrindo e, pondo as mãozinhas sobre os olhos, fica em silêncio, na expectativa. Ouço, então, a mãe dizer: André, onde está esse menino? Onde será que ele foi parar? André, cadê você?
André destapa os olhos gargalhando, e a mãe, fingindo surpresa, beija-o com carinho tangível, profundo. O menino ergue as mãozinhas, segura seu rosto. Ficam, assim, os dois, um a olhar para o outro, e ele, por fim, adormece em seu colo.
Anunciam meu embarque, e eu contemplo pela última vez a cena tantas vezes retratada por Michelangelo, Rafael, Murilo e até Picasso - “A madona e seu filho”. Enterneço-me, e caminho na passarela até o avião com o coração mais leve, como se fosse possível carregar comigo um pouco do beijo da mãe e da ternura dos dois.
O que faz, afinal, de um simples beijo um momento capaz de mudar tudo à nossa volta? Que força invisível transforma um beijo em uma experiência
única, mágica? Como um gesto tão íntimo se tornou símbolo de amor e arte ao longo dos séculos?
O significado do beijo na vida humana
Diane Ackerman, em "Uma História Natural dos Sentidos", considera o ato de beijar como uma expressão profundamente enraizada nos sentidos humanos.
Ao analisar as possíveis origens evolutivas desse gesto, sugere que o beijo pode ter começado como uma forma de alimentação boca-a-boca entre mãe e filho, transformando-se ao longo do tempo em um ato de intimidade e afeto.
O beijo é uma das formas mais poderosas de comunicação não verbal, carregado de significados emocionais e biológicos. Ele desencadeia uma resposta química no cérebro, liberando hormônios como a oxitocina, que desempenha um papel essencial na construção de relacionamentos saudáveis, na maternidade e até mesmo na nossa capacidade de empatia.
Mas o beijo vai além da biologia. Culturalmente, ele carrega um peso simbólico, presente em rituais, celebrações e obras de arte. Psicologicamente, ele é a manifestação de sentimentos profundos e de conexão emocional, como observamos na cena entre André e sua mãe.
O beijo transita, assim, na dimensão do mágico, uma qualidade que adquiriu ao longo do tempo. E o elemento mágico, no fim das contas, nos ajuda a viver com uma sensação de encantamento e maravilha diante do mistério da existência.
Transcendendo os limites da realidade cotidiana
Uma dimensão ritualística - Em algumas culturas, beijar um objeto sagrado ou uma relíquia é considerado um ato de transferência de bênçãos ou poder. O beijo sobre anéis ou crucifixos, em cerimônias religiosas ou de coroação, é visto como uma forma de consagrar o ato ou a pessoa envolvida, como se o gesto fosse capaz de canalizar forças divinas.
Um poder de transmutação - A ideia de o beijo ter um componente "mágico" é profundamente enraizada em mitos, contos de fadas e tradições culturais. O ato de beijar frequentemente transcende o simples gesto físico para se tornar um agente de transformação, renovação e união.
É gesto poderoso que contém em si a capacidade de mudar realidades e estados de ser – seja quebrando maldições, como em A Bela Adormecida e Branca de Neve, ou unindo amantes, como nos filmes Romeu e Julieta e Orgulho e Preconceito.
No cotidiano, esse componente mágico pode transformar o estado emocional de quem o recebe ou oferece. Um beijo de boa noite pode trazer conforto e segurança, um beijo de despedida pode marcar o início de uma ausência, enquanto o beijo apaixonado pode alterar profundamente a maneira como as pessoas se sentem em relação a si mesmas e aos outros.
O beijo romântico e sua expressão maior em Rodin
O Beijo, uma obra-prima icônica que encapsula a essência do amor romântico e a profunda conexão emocional entre os amantes, destaca-se como uma das representações mais sublimes e universais da paixão humana na história da arte.
A obra de Rodin alcança e expressa as expectativas do beijo no amor romântico ao capturar a profundidade emocional, a intensidade física e a idealização que acompanham esse gesto.
Rodin utiliza o realismo e a idealização, a postura dos amantes, a materialidade do mármore e o contexto simbólico para criar uma expressão poderosa e duradoura. Delineia um momento de suspensão, em que o tempo parece parar e o amor atinge sua expressão máxima. No simples, mas poderoso ato de um beijo.
Uma palavra final para nossa reflexão... com beijo e com afeto
Seguir a jornada do beijo historicamente construída é uma maneira de explorar a riqueza da experiência humana e de ampliar nossa compreensão das complexidades das relações humanas.
Desse simples gesto, emerge uma miríade de significados profundos. Ao ecoar através dos tempos, o beijo reflete nossos anseios e esperanças mais fundamentais, revelando, em última instância, quem somos como indivíduos e como sociedade.
Talvez, por isso, não seja demasiado afirmar que o beijo é uma das últimas fronteiras de esperança para sermos felizes.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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