Cultura

Onde os sonhos sabem voar

Os sonhos assombram ou animam sua existência? O que há de realidade nos sonhos que sonhamos?

A maçã flutuante oculta o rosto do homem, lembrando que o sonho e o mistério estão sempre por trás do visível. Um símbolo poderoso da estética do sonho - The Son of Man (1964) – René Magritte
A maçã flutuante oculta o rosto do homem, lembrando que o sonho e o mistério estão sempre por trás do visível. Um símbolo poderoso da estética do sonho - The Son of Man (1964) – René Magritte
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 22/07/2025, às 13h34


A liberdade de sonhar como criação infinita

Numa folha qualquer… o primeiro gesto do sonho: desenhar o impossível com inocência.

Numa folha qualquer… o primeiro gesto do sonho: desenhar o impossível com inocência

Numa folha qualquer / Eu desenho um sol amarelo / E com cinco ou seis retas / É fácil fazer um castelo…(Aquarela, de Toquinho)

Há quem diga que sonhar é perder tempo. Mas talvez seja, ao contrário, a forma mais pura e intensa de liberdade que o homem possui.

Ali, tudo é possível: castelos em cinco linhas, mares num pingo de tinta, gaivotas voando e astronaves que partem sem bússola. No sonho, como na infância, criamos mundos onde o real se curva diante do desejo, no devaneio da mente desperta, no mistério que nos visita à noite. Formas que nos conduzem por paisagens simbólicas, revelando nossas buscas mais profundas.

Se um pinguinho de tinta / Cai num pedacinho azul do papel / Num instante imagino / Uma linda gaivota a voar no céu…

Na folha da mente, o lápis da imaginação redesenha o que o mundo insiste em apagar. No sonho, rompemos muros, voamos entre continentes, damos forma ao que não ousamos dizer acordados.

Mas até a mais linda aquarela, um dia… / ...descolorirá

E é aí que os sonhos se tornam ainda mais preciosos. Porque mesmo fugidios, deixam vestígios. E é sobre esses traços, entre a fantasia e o sentido, que se ergue o nosso texto.

O sonho como espaço de verdade simbólica

Durante séculos, os sonhos foram vistos como mensagens divinas, prenúncios ou enigmas. Mas foi no século XX que essa paisagem ganhou nova dimensão simbólica.

Para Carl Gustav Jung, os sonhos são manifestações do inconsciente coletivo. Uma linguagem profunda que nos conecta a imagens arquetípicas presentes em todas as culturas.

Há os sonhos que nos visitam durante o sono, enigmáticos, involuntários, moldados pelo inconsciente. E há os que forjamos acordados, entre o desejo e a imaginação. Os dois, no fundo, revelam nossa tentativa de atravessar a realidade e tocar aquilo que falta. Seria ouvir aquilo que, acordados, ignoramos.

O sonho como estética artística

A persistência da memória, de Salvador Dalí (1931)

A persistência da memória, de Salvador Dalí (1931)

Na distorção do tempo, Dalí pintou o impossível com clareza fotográfica

Quando os surrealistas, no início do século XX, abraçaram o mundo dos sonhos como campo de criação estética, eles o fizeram como reação à brutalidade da guerra e ao racionalismo excessivo. Dalí, Magritte, Max Ernst buscaram expressar o indizível; viviam em um tempo em que o mundo ruía sob os escombros da razão.

O trauma da Primeira Guerra Mundial e a crise do período entre guerras abriram caminho ao surrealismo, uma estética que era, ao mesmo tempo, fuga e enfrentamento.

Para esses artistas, o sonho não era apenas um tema; era, antes, uma resposta. À destruição. À frieza do cientificismo. Ao desencanto com o progresso. Assim, abriram caminho para que o inconsciente se tornasse matéria de arte, com suas imagens ilógicas, deslocadas, simbólicas.

A arte, então, não mais busca representar o visível, mas tornar visível o invisível: os desejos, os medos, o que escapa ao controle. Foi uma revolução silenciosa, mas poderosa.

Dalí, Magritte e os surrealistas buscaram captar os enigmas do sonho noturno; já Chagall, Frida Kalo e os pré-rafaelitas navegavam entre o delírio poético e o devaneio acordado. Sonhos pintados, sonhos pressentidos. Em todos, uma ponte entre dois mundos.

Les Amoureux en bleu– Marc Chagall, 1914

Les Amoureux en bleu– Marc Chagall, 1914

Com Chagall, o amor flutua: dois corações suspensos no céu dos sonhos

Do lirismo flutuante de Chagall à arquitetura do impossível de Magritte, os sonhos se multiplicam: às vezes ternos, às vezes perturbadores. Mas sempre além do chão.

The Castle of the Pyrenees, René Magritte (1959)

The Castle of the Pyrenees, René Magritte (1959)

Magritte sonhou em pedra: um castelo no ar, erguido pelos sonhos

O sonho na vida: refúgio ou motor?

Na vida cotidiana, sonhar pode ser subterfúgio, um antídoto contra o peso da realidade. As crianças sonham brincando; os adultos, quando resistem ao cinismo, também. Há quem sonhe para fugir. Há quem sonhe para criar. É a diferença entre ilusão e potência.

Em nossos tempos, sonhar é quase um ato de resistência. Contra o pragmatismo, contra a pressa, contra a lógica da produtividade e, sobretudo, contra a anestesia afetiva que nos torna cegos à dor e à presença do outro.

Sonhar é também abrir brechas de sensibilidade num mundo que se fecha em si mesmo. Sonhar é afirmar que ainda há espaço para o imaterial. Para o que pulsa mesmo sem forma. Para o desejo de um mundo que ainda não existe, mas poderia.

Vamos todos numa linda passarela / De uma aquarela / Que um dia enfim… descolorirá

O sonho é a linguagem secreta entre o que somos e o que poderíamos ser. Talvez ele desbote, como uma aquarela esquecida ao sol. Mas enquanto houver alguém disposto a ouvir seus símbolos, a vida seguirá menos literal, mais verdadeira. Porque quem sonha não foge do mundo. Apenas ousa redesenhá-lo.