Analisando a metáfora de Pandora em tempos modernos e sua relevância nas discussões contemporâneas sobre esperança
por Marlene Polito
Publicado em 06/05/2025, às 14h11
A metáfora que resiste ao tempo
“CPI pode abrir Caixa de Pandora no INSS”, dizia a Folha de S. Paulo em 1º de maio de 2025. A expressão resiste ao tempo, está nas manchetes e nos debates. Mas será que ainda compreendemos o mito por trás da metáfora? Talvez valha olhar de perto o que ela ainda nos diz.
Um mito sobre os nossos dias
O mito começa com uma ousadia. Prometeu, o titã amigo dos homens, desafiou os deuses e roubou o fogo do Olimpo. Foi o bastante para que Zeus decretasse um castigo, não só a Prometeu, mas à humanidade.
Como parte desse castigo, Zeus ordenou que os deuses moldassem uma mulher de beleza e graça irresistíveis: Pandora. Ela foi enviada à Terra como “presente” a Epimeteu. Este a recebeu, mesmo contra os avisos do irmão. E foi assim que a caixa chegou às mãos humanas.
Prometeu, cujo nome significa “o que pensa antes”, representa a previsão, a ousadia que antecipa o futuro. Epimeteu, “o que pensa depois”, simboliza a reflexão tardia, o arrependimento.
A diferença entre eles expressa um contraste filosófico sobre a condição humana. Prometeu desafia, doa o fogo. Epimeteu, ao receber Pandora, confirma a vulnerabilidade que se segue ao impulso.
Pandora recebeu dons de todos os deuses: beleza, inteligência, persuasão, habilidade — e a curiosidade. Ela trouxe uma caixa, que jamais deveria ser aberta. Mas, é claro, foi aberta. Dela escaparam as dores do mundo: inveja, doença, guerra, velhice, medo. No fundo, restou apenas a esperança. Frágil, silenciosa, mas presente.
A esperança entre sombras
A caixa se abriu, e os males se espalharam. Mas o que dizer da esperança?
Seria ela um consolo ou uma promessa? Uma ilusão ou a única forma de seguir?
Ao longo do tempo, a filosofia oscilou entre vê-la como força ou armadilha. Nietzsche desconfiava dela. Camus via nela um impulso absurdo, mas vital.
Talvez o mais honesto seja aceitar que a esperança é ambígua, e é isso que a torna humana.
Quando a arte espelha o humano
O Grito, de Edvard Munch: o grito de um mundo que já não consegue conter seus males.
Essa condição, marcada pela dor e pela dúvida, encontrou na arte seu espelho.
No Grito de Munch, a caixa parece ter se aberto num só ser.
A figura somos todos nós diante do que não conseguimos conter.
O horror como testemunho
Saturno devorando um filho, de Francisco Goya. O horror assimilado: o mal devora o que ele mesmo gerou.
Goya vai além. Em Saturno, ou Cronos, devorando um filho, o mal nasce das entranhas. É o próprio tempo, ou o poder, que destrói aquilo que gera. Não há consolo possível na cena. A caixa não foi apenas aberta. Foi assimilada.
O artista, talvez como Epimeteu, pinta o arrependimento, não antecipa o caos, só testemunha o que não pode mais ser desfeito. Pintar isso, expor o monstruoso, é resistência, quase um sussurro de esperança.
Quando a arte espelha o humano
Talvez o pintor seja, ao mesmo tempo, Prometeu e Epimeteu: antecipa sentidos, mas só compreende o gesto depois que a obra já está no mundo. A arte abre sua própria Caixa de Pandora, e oferece ao olhar o que as palavras não alcançam.
Mesmo quando escancara o caos, ela convoca a consciência. Ao escolher a delicadeza, reafirma a razão de permanecer, quase um sussurro de esperança.
A escolha pela beleza
As Três Graças, de Peter Paul Rubens. A beleza como escolha – e como resistência.
E então Rubens. Com As Três Graças, ele fecha uma brecha de luz sobre o mundo em ruínas. A beleza reaparece, não como distração, mas afirmação de vida.
Talvez a esperança no fundo da caixa seja essa capacidade de ainda ver graça, tocar com doçura, apesar da dor. Não há ingenuidade nas Graças de Rubens, há uma escolha. E escolher a beleza, quando se conhece a feiura, é um ato de esperança refinada.
Banksy e o gesto suspenso
É aí que volta a imagem de Banksy. Em Girl with Balloon, a esperança está ao alcance da mão — e também escapando. A menina estende o braço — não se sabe se perdeu ou tocará o balão.
É nesse intervalo que habitamos. Entre o medo e a fé. Entre o já perdido e o ainda possível. Entre o mundo que fere e a esperança que insiste em permanecer.
Viver no quase
E talvez seja essa capacidade de imaginar, de buscar sentido, o que nos torna dignos de continuar. Talvez esse seja nosso destino: viver no quase.
Quase alcançando o que nos salva.
Quase vencendo o que nos fere.
Quase abrindo, quase fechando, a caixa.
É nesse intervalo frágil entre o que se perdeu e o que ainda pode ser tocado que resistimos. E onde há resistência, ainda há esperança.
Talvez por isso manchetes voltem, vez ou outra, a falar em caixas de Pandora.
Tentamos nomear, com velhas metáforas, os impasses de sempre. Somos um pouco Prometeu, ousando imaginar. E também Epimeteu, compreendendo tarde demais. Mas, enquanto houver esse intervalo, haverá esperança.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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