Cultura

“Feliz desaniversário pra você”

A cena do chá que não celebra nada (e tudo ao mesmo tempo)

Alice é surpreendida com uma festa sem motivo: o famoso chá do desaniversário, criação dos estúdios Disney inspirada no espírito nonsense de Lewis Carroll. - Imagem: Divulgação
Alice é surpreendida com uma festa sem motivo: o famoso chá do desaniversário, criação dos estúdios Disney inspirada no espírito nonsense de Lewis Carroll. - Imagem: Divulgação
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 13/05/2025, às 12h48


Era para ser só um chá. Mas, como tudo em Alice no País das Maravilhas, o que parece banal vira celebração do impossível.

Na adaptação da Disney, Alice se junta ao Chapeleiro Maluco, à Lebre de Março e ao Dormidongo em um chá que desafia a lógica. “Feliz desaniversário!”, eles gritam, brindando com bolo e música um dia qualquer – qualquer um dos 364 dias que não são o aniversário. A festa é absurda, sim. Mas libertadora. 

Curiosamente, essa cena não existe nos livros originais de Carroll. O termo desaniversário é criação dos roteiristas da Disney, que captaram o espírito do nonsense carrolliano e o transformaram em poesia visual. 

Alice e a lógica do impossível 

Alice é, por natureza, uma exploradora do ilógico. Ela não luta contra o absurdo, mergulha nele, estranha, se irrita, mas segue. Ao contrário de muitos adultos que precisam de lógica e explicações, Alice aceita que as regras mudam a todo instante.

“Às vezes, eu acredito em seis coisas impossíveis antes do café da manhã”, diz a Rainha Branca em Através do Espelho. Alice sorri. Ela entende.

O universo de Carroll é uma crítica deliciosa ao racionalismo absoluto. Lá, o absurdo não é caos, é uma “outra lógica”, interna, misteriosa. Celebrar um desaniversário, nesse contexto, é mais do que uma piada maluca: é uma maneira de romper com o calendário do previsível. É a vida se permitindo existir mesmo quando não há motivo marcado.

A arte, como Alice, também entende

A arte, como Alice, entende que nem tudo precisa ter explicação para ter valor. 
Como o desaniversário, muitas criações artísticas desafiam a lógica e recusam o sentido à primeira vista, o manual de instruções. E, justamente por isso, nos tocam. 

A arte de repetir o instante

Instalação "Sala de Espelhos Infinitos", de Yayoi Kusama. O tempo se dissolve e o agora vira experiência absoluta. Imagem: Divulgação

Nas instalações de Yayoi Kusama, não há começo nem fim. O visitante se vê refletido ao infinito, seu corpo se desfazendo em fragmentos de luz que dançam no vazio. O tempo parece suspenso. Não há roteiro. Apenas luzes, ecos e o próprio olhar, em festa.

Kusama, que viveu parte da vida em hospitais psiquiátricos, entendeu como poucos o valor de um instante sem exigência. Suas obras são desaniversários visuais: um mergulho no presente, sem cobrança de passado ou futuro.

Talvez o desaniversário não seja apenas uma invenção do Chapeleiro. Talvez seja um modo legítimo de resgatar o encanto do cotidiano, o instante que chega sem ser anunciado.

A lógica do absurdo

A Traição das Imagens, de René Magritte. “Isto não é um cachimbo” – o paradoxo como convite à dúvida e à imaginação. Imagem: Divulgação

A arte também ri do que parece sério. Em Magritte, o cachimbo que “não é um cachimbo” nos obriga a abandonar certezas. 
Assim como o Chapeleiro, Magritte nos lembra que a realidade é apenas uma versão, e que toda representação é uma invenção da nossa percepção e imaginação.  
Talvez festejar um desaniversário seja justamente isso: aceitar o absurdo e ver o mundo com outros olhos.

O instante que ninguém marcou

Fotografia de Henri Cartier-Bresson. Cartier-Bresson eterniza o não-marco: o instante que ninguém esperava. Imagem: Divulgação

Henri Cartier-Bresson, mestre da fotografia do instante, congelava momentos que ninguém havia programado. Nenhuma data importante, nenhum marco. Apenas a delicadeza de um gesto, a dança da luz, o movimento que já vai passar.

Suas imagens são desaniversários visuais: uma celebração do que ninguém viu chegando. E que, ainda assim, merecia ficar para sempre. É pura celebração do instante

O Brasil profundo e seus desaniversários

Forró de rua em Recife, PE. Festejo espontâneo: quando a celebração nasce da vontade, sem data marcada. Imagem: Divulgação

O Brasil profundo conhece bem seus desaniversários. Um forró na praça de terça-feira. Um terço rezado na varanda. Uma fogueira improvisada. Nada foi marcado, tudo foi vivido com presença.

Celebrar o que não é marco é um convite à leveza. É lembrar que o agora também merece vela, aplauso e sorriso, mesmo que ninguém tenha soprado balões.

Um começo sempre, sem fim, sem final

Festejar o desaniversário é abrir espaço para esse tipo de lógica: o não-evento, o sem-motivo. Um sorriso fora de hora. Um brinde sem razão. Um dia qualquer, especial apenas porque alguém se lembrou de olhar.

De Kusama a Cartier-Bresson, de Alice ao povo que dança sem data, o desaniversário se revela como um gesto delicado de liberdade.

Porque viver, no fundo, é isso: acordar sem data comemorativa e, ainda assim, agradecer. Olhar nos olhos de alguém sem motivo especial, e se comover. Sorrir para um momento comum, e perceber que a vida inteira mora ali.

Então, se hoje não é seu aniversário, melhor ainda.

Feliz desaniversário pra você. E que venham muitos outros, sem motivo, sem convite, só com vontade de viver.