É nesse espaço delicado, entre fé, imaginação e simplicidade, que o culto ao Menino Jesus se faz presente
por Marlene Polito
Publicado em 10/12/2024, às 12h03
Meu Menino Jesus
Uma das lembranças mais ternas que carrego em meu coração é a figura do Menino Jesus.
Cristã que sou, costumo orar por todos — sejam eles próximos ou distantes; mas minha devoção a esse Menino é particular, só minha. Peço, sem constrangimentos, que embale meus sonhos e me proteja e guarde; encho-me de coragem e revelo os anseios e os segredos da criança que ainda trago dentro de mim. É momento de confidência e de ternura. Criança que é, certamente não levará em conta meus deslizes e tropeços.
O sonho poético de Alberto Caeiro
No poema VIII de “O Guardador de Rebanhos”, Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, apresenta o Menino Jesus de forma simples, natural, brincando, correndo e vivendo como qualquer criança do campo, longe da pompa divina:
“Limpa o nariz ao braço direito, Chapinha nas poças de água, Atira pedras aos burros, Rouba a fruta dos pomares, E foge a chorar e a gritar dos cães.”
A partir dessa visão poética, é possível enxergar um encontro com o sagrado sem reverência ou pompa, onde a fé ganha leveza e proximidade.
É nesse espaço delicado, entre fé, imaginação e simplicidade, que o culto ao Menino Jesus se faz presente nas minhas memórias afetivas e, ao mesmo tempo, na poesia de Caeiro.
A origem do culto
Para compreender a profundidade desse sentimento e a força dessa figura, é preciso voltar no tempo. O culto ao Menino Jesus remonta aos primeiros momentos do cristianismo, quando o mistério da Encarnação — Deus feito homem e criança — começou a ser celebrado.
Embora inicialmente a ênfase recaísse sobre a vida adulta e o sacrifício de Cristo, o reconhecimento do Natal como festa litúrgica no século IV, fixada em 25 de dezembro, trouxe a infância de Jesus para o centro da espiritualidade.
O presépio, difundido por São Francisco de Assis no século XIII, aproximou ainda mais o sagrado do lar, conferindo um caráter íntimo e familiar ao culto.
A representação do Menino Jesus nas artes
Ao longo dos tempos, o imaginário em torno do Menino Jesus encontrou nas artes um campo fértil para sua expansão. Da arte bizantina às iluminuras medievais, e posteriormente nas criações dos grandes mestres do Renascimento e do Barroco, a iconografia do Menino divino assumiu diferentes fisionomias e simbolismos.
Nos primeiros séculos da era cristã, pinturas e afrescos em catacumbas trazem Maria com o Menino ao colo – uma das mais antigas representações da Virgem com a criança, ainda de forma simples e simbólica.
Na arte bizantina, séculos VI a XIII, a iconografia Theotokos (Mãe de Deus) apresenta a figura da Virgem Maria segurando o Menino Jesus com uma expressividade artística mais frontal, austera e simbólica, típica do império de Bizâncio.
Theotokos, divulgação: Academia Marial
Com o Renascimento, há uma sensibilidade mais humana e delicada: o Menino Jesus é retratado como uma criança real, cheia de expressividade, carinhosa nos braços de Maria, em composições repletas de luz, harmonia e perspectiva. Pintores como Leonardo da Vinci, Rafael e Michelangelo criaram imagens em que a serenidade do Menino contrasta com a complexidade do mundo adulto, reforçando a ideia de que ali se encontra o cerne do mistério cristão: o divino imerso na fragilidade humana.
Madonna del Prado, de Rafael, divulgação: Wikipedia
No Barroco (séculos XVII e XVIII), a dramaticidade e o jogo de luz e sombra acentuaram o contraste entre a inocência da criança e o destino sacrificial que viria.
Nesse período, esculturas e imagens tornaram-se objeto de devoção popular. O "Menino Jesus de Praga" é um exemplo célebre de uma devoção intensa e próxima, em que a imagem do Menino adquire dimensões afetivas e milagrosas.
Esculturas e presépios populares, sobretudo na Península Ibérica e na América Latina, também ajudaram a difundir uma visão próxima e carinhosa do Menino, tornando-o parte da paisagem cultural e emocional do Natal.
Nos séculos mais recentes, artistas modernistas e contemporâneos mantêm vivo o simbolismo do Menino Jesus, reinterpretando sua figura de modo estilizado, porém sem romper o vínculo com sua pureza e humanidade — valores que ainda tocam o coração dos fiéis.
A Sagrada Família, de Janet Mckenzi, divulgação: Pinterest, Flickr
Uma palavra final com Caeiro
A visão de Caeiro, quase pagã em sua simplicidade, aproxima o Menino Jesus do coração humano – sem ornamentos excessivos, mas pleno de significado. O poeta revela que a criança divina não está apenas nas igrejas, nas imagens sacras ou nas grandes tradições artísticas, mas também nos sonhos, nas memórias queridas, em cada olhar que se enternece e em cada coração que se permite sonhar.
Despeço-me, assim, neste artigo, com uma prece singela — as palavras do poeta, que vê, após tantas travessuras e peripécias, o Menino adormecer:
“Quando eu morrer, filhinho, Seja eu a criança, o mais pequeno. Pega-me tu no colo E leva-me para dentro da tua casa. Despe o meu ser cansado e humano E deita-me na tua cama. [...] E dá-me sonhos para eu brincar Até que nasça qualquer dia Que tu sabes qual é.”
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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