Toda máscara é também um espelho; devolve-nos o rosto que não temos

por Marlene Polito
Publicado em 09/09/2025, às 09h44
O enigma da máscara
Poucos símbolos atravessaram tantos séculos e culturas com a mesma intensidade da máscara. Ela aparece nos rituais africanos e ameríndios, no teatro Nô japonês, nas festas da Idade Média e nas ruas de Veneza.
Neste texto, seguimos sobretudo o fio da tradição ocidental, do teatro grego aos bailes aristocráticos, até os filtros digitais, onde a máscara nunca deixou de intrigar. Ainda assim, todas parecem guardar a mesma essência. Mais do que ocultar, cada máscara é convite para que outro eu se revele, livre para dizer e fazer o que talvez o rosto nu não ousasse.
Da Grécia ao rito sagrado
No início do teatro, a máscara não era um adereço, mas um instrumento sagrado.
Na Grécia, nas festas dedicadas a Dionísio, deus do vinho e do êxtase, homens comuns encarnavam heróis e divindades. No palco, deixavam de ser eles mesmos para viver a voz do mito. Chamava-se prosopon, “rosto” e “personagem” ao mesmo tempo.
Mais tarde, em Roma, virou persona, de per-sonare, “soar através”, lembrando também sua função acústica. A ideia de persona surge então como papel social que representamos até hoje.
Nesse espaço artístico, também nasce a dualidade que atravessaria os séculos: a máscara da tragédia, com feições graves, e a da comédia, com sorrisos exagerados. Essa oposição se condensaria nas duas faces que hoje simbolizam o teatro.
Carnavais e hierarquias suspensas
Na Idade Média e depois em Veneza, o disfarce deixou de ser sagrado para se tornar social. No Carnaval, reis eram ridicularizados, clérigos parodiados, e plebeus e nobres se confundiam sob o mesmo véu. A máscara suspendia hierarquias: garantia anonimato, mas também poder. O fascínio estava justamente em dissolver a identidade na multidão mascarada.

No palco da Commedia dell’Arte
Quase no mesmo período, no século XVI, a Itália surgia a Commedia dell’Arte. Se em Veneza a máscara dissolvia papéis sociais, no teatro popular ela encarnava arquétipos.
Arlequim, de roupas coloridas e máscara preta, era a astúcia que ria da autoridade. Pierrot, branco e melancólico, chorava amores impossíveis. Colombina, graciosa e esperta, decidia com liberdade os rumos da trama.
Juntos, eles formavam um triângulo eterno: a esperteza que trans gride, o amor que sofre e a beleza que escolhe. Não eram apenas personagens, mas espelhos de emoções que ainda reconhecemos em nós.

Da corte ao cinema
Do século XVII em diante, as máscaras migraram para outros cenários. Nos bailes da corte, tornaram-se licença para a transgressão, mistura de erotismo e liberdade.
Já no teatro moderno, encenadores como Jarry e Brecht retomariam a máscara como recurso estético para criticar convenções sociais e políticas.
No cinema, Chaplin transformou a maquiagem e o figurino numa máscara viva, que falava mais do que palavras.

A máscara digital
Hoje, as máscaras raramente são de veludo, couro ou madeira. São digitais. Se antes moldavam o rosto em matéria palpável, agora são feitas de pixels, filtros e avatares.
Avatar, do sânscrito avatāra, significava “descida divina”. Hoje é a encarnação virtual de nós mesmos, editada para mostrar não quem somos, mas como desejamos ser vistos. Nesse sentido, talvez nenhum exemplo traduza melhor essa ambiguidade do que Neytiri, heroína de Avatar, de James Cameron.
Neytiri é mais do que personagem; é a imagem de um corpo-outro, construído para habitar um mundo virtual. No termo sânscrito já existia a ideia de descida divina, um ser que assume nova forma para revelar uma essência. No cinema, porém, o avatar é também máscara: não esconde, mas transforma; não apaga, mas reinventa.
Entre humano e pandorano, entre real e digital, Neytiri encarna o desejo antigo e atual de sermos diferentes de nós mesmos, e ao mesmo tempo reconhecíveis. A máscara continua sendo esse espelho ambíguo: revela o que ocultamos e oculta o que ousamos mostrar.

O que no cinema aparece como ficção, em nossas vidas se tornou cotidiano. As máscaras já não estão nos palcos ou salões, mas nas redes sociais, com seus perfis editados, imagens retocadas, personas profissionais impecáveis. Disfarçamo-nos não para sumir, mas para sermos vistos. O anonimato deu lugar à exibição.
Entre esconder e mostrar
Entre o prosopon grego e o filtro digital, entre Veneza e os avatares virtuais, a máscara revela sempre a mesma ambiguidade oculta para revelar. Mais do que um adereço, é metáfora da própria condição humana. Pois, afinal, qual seria o rosto real se ousássemos nos mostrar sem máscaras?
Talvez nunca saibamos. Talvez a verdade esteja justamente nesse jogo de esconder e mostrar, nesse eterno teatro em que cada um de nós é ator e público de si mesmo.

Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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