Nem toda obra assinada é reconhecida, e nem toda obra sem assinatura é esquecida
por Marlene Polito
Publicado em 27/05/2025, às 10h30
Assinar ou não assinar? Eis o delírio da arte
Velázquez não assinou a maioria de suas obras. Sua posição na corte de Filipe IV da Espanha e seu estilo já bastavam para identificá-lo. Ainda assim, sua presença em Las Meninas, em pleno ato de pintar, pode ser lida como uma forma silenciosa de reivindicar autoria. Um gesto de confiança? De soberba?
Detalhe do monograma “AD”, com o qual Dürer passou a assinar suas obras.
Já Michelangelo, ao esculpir a Pietà, teve outra reação: ferido no orgulho ao ouvir visitantes atribuírem a obra a outro artista, voltou à Basílica de São Pedro e gravou discretamente seu nome no busto da Virgem Maria. Arrependido do impulso, talvez por vaidade, talvez por pudor religioso, nunca mais repetiu o gesto.
Há algo de fascinante nessa relação entre o artista e a assinatura. Alguns a escondem, como Velázquez. Outros a exibem como marca, como Albrecht Dürer, que transformou suas iniciais em símbolo. Ou como protesto: o suíço Arnold Böcklin chegou a assinar com sangue uma de suas obras. Já o belga Wim Delvoye tatuou um homem vivo e o vendeu como arte, assinando com o corpo alheio. E há quem prefira deixar a obra falar sozinha: Leonardo da Vinci não assinava seus quadros, como a enigmática Monalisa, cuja identidade resiste aos séculos mesmo sem nome à vista.
É nesse território ambíguo, entre o nome e o anonimato, o controle e o acaso, que surgem episódios curiosos, imprevisíveis, deliciosamente humanos. Eis alguns deles.
Dalí e o cheque ilustrado
Dalí não economizava em excentricidades, nem nas contas de restaurante. Certa vez, ao pagar uma refeição cara, ele preencheu um cheque e, no verso, fez um desenho. Sabia que prefeririam guardar o desenho. Era sua forma de fazer arte circular... e também de jantar de graça com elegância.
Retrato de Salvador Dalí, cuja imagem – e bigode – tornaram-se assinatura viva.
A restauração que virou meme mundial
Em 2012, uma senhora espanhola, cheia de boas intenções, tentou restaurar por conta própria o afresco Ecce Homo, que retratava Cristo. O resultado foi um rosto deformado. E viralizou no mundo inteiro. Virou símbolo do que acontece quando zelo encontra amadorismo. O número de visitantes da igreja triplicou depois da gafe. O “erro” virou ícone pop e, sem querer, ganhou autoria própria.
O antes e o depois da restauração de “Ecce Homo”, feita por Cecilia Giménez (1930).
O santo com ouvidos demoníacos
Durante séculos, um afresco medieval de São Francisco ficou intacto numa pequena igreja italiana. Até que, em uma restauração recente, descobriram algo bizarro: o artista havia pintado, disfarçadamente, um rosto demoníaco dentro da orelha do santo. Provocação? Arrependimento? Vingança contra a Igreja? Ninguém sabe. Mas a imagem está lá, escondida, sem assinatura, mas com intenção.
Van Gogh e a garrafa de vinho
Dizem que, ainda em vida, Van Gogh trocou um de seus quadros por uma garrafa de vinho barato. O pintor, ignorado pela crítica e sofrendo com problemas mentais, mal conseguia vender suas obras. O mesmo quadro, anos depois, foi arrematado por milhões em um leilão. Um lembrete cruel: o valor da arte raramente está no presente, tampouco na justiça. Sua assinatura estava lá, sem reconhecimento.
A Vinha Encarnada, de Van Gogh. Única obra vendida por Van Gogh em vida.
O esqueleto à venda
Wim Delvoye teve uma ideia extrema: tatuou as costas de um homem vivo com desenhos elaboradíssimos e vendeu, em contrato, o direito de exibir sua pele após a morte. A obra, chamada Tim, hoje é exibida viva, o tatuado viaja para mostras e se senta imóvel. Depois de sua morte, a pele será emoldurada como tela. Uma pergunta importante: até onde vai a assinatura de um artista quando o suporte é a vida de outro?
Tim Steiner, o homem tatuado por Wim Delvoye.
E a Monalisa, que não tinha sobrancelhas?
Durante anos, achou-se que Leonardo da Vinci teria esquecido de pintar as sobrancelhas da Monalisa. Até que exames revelaram traços muito sutis dos pelos, hoje quase apagados. Conclusão: a obra foi alvo de restaurações que apagaram detalhes originais. E em outras palavras: Monalisa tinha, sim, sobrancelhas. O tempo as apagou.
O legado invisível da criação
Assinar não é tudo. Permanecer é mais difícil.
Alguns artistas impõem sua presença no silêncio, enquanto suas obras nos marcam sem alarde, resistindo além dos nomes que jamais são pronunciados.
A arte, com ou sem assinatura, não precisa dizer quem é. Ela vive no gesto que perdura, no traço que escapa. Talvez o sentido mais profundo da arte não esteja em afirmar uma autoria, mas em dissolvê-la.
A obra que nos transforma deixa de pertencer a quem a fez, passa a habitar quem a recebe. E quando nos alcança, não revela o autor, revela quem somos. Ela nos reflete. Ela nos devolve algo de nós mesmos.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]