Cultura

Why? Por quê? Pourquoi? ¿Por qué? Perché? Warum? почему

Relação entre perguntas e criações artísticas, desde Beethoven até os Gêmeos, e o impacto do 'por quê?' na sociedade

Maravilhar-se. Quando o mundo é espanto e cada coisa pede um “por quê?” - Imagem: Reprodução
Maravilhar-se. Quando o mundo é espanto e cada coisa pede um “por quê?” - Imagem: Reprodução
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 07/10/2025, às 10h10


“A vida pode ser maravilhosa” – Ivan Lins

A vida, para a criança, é literalmente maravilhosa. A palavra vem de mirabilia: aquilo que causa espanto, admiração, surpresa.

Antes mesmo de falar, o olhar infantil já se abre diante do mundo como um espetáculo incompreensível e ao mesmo tempo belo, instigante. Quando aprende a falar, repete sem cessar: “por quê?”. Duas palavras que transformam o assombro em linguagem e empurram o mundo para frente.

Hannah Arendt lembrava, em A condição humana, que o pensamento nasce justamente desse espanto: do instante em que algo nos interrompe e exige explicação. Para manter o mundo inteligível, perguntar é não se render ao silêncio ou ao automático; é insistir na busca, mesmo quando não há resposta clara.

O “por quê?”, nesse sentido, é o gesto inaugural da consciência: é na pergunta que começa o pensamento mais complexo, e, com ele, a possibilidade de transformar o mundo.

Os caminhos incríveis de um “por quê?”

Grafitti na av. 23 de maio em São Paulo (2014), de Os Gêmeos
Grafitti na av. 23 de maio em São Paulo (2014), de Os Gêmeos

Talvez nenhuma resposta nos baste, mas é a pergunta que move a história. Enquanto houver um “por quê?” vibrando em nós, haverá descobertas, sonhos e arte.

Não é simples curiosidade biológica, daquelas que leva o gato a farejar ou o macaco a testar uma ferramenta. O nosso “por quê?” nasce de um território mais vasto.

Somos capazes de simbolizar, criando mitos e palavras para o que não vemos. Temos racionalidade, que organiza hipóteses, mas também emotividade, que colore a pergunta com maravilha e angústia. Guardamos memória para ligar passado e futuro, imaginação para projetar mundos possíveis, autoconsciência para refletir sobre nós mesmos e uma vocaçãopara a transcendência.

Essa combinação, razão, emoção, ética e sonho, transforma simples curiosidade em força criadora.

O “por quê?” que vira arte

Na arte, o “por quê?” ganha corpo, cor e jogo. É a pergunta que não pede apenas ciência, mas imagem e metáfora.

Desde as cavernas de Altamira até os muros contemporâneos, a dúvida vira desenho, música, teatro. Beethoven transformou o silêncio em som, perguntando por que criar mesmo sem ouvir. E Shakespeare, em Hamlet, fez ecoar o “ser ou não ser?”, talvez o “por quê?” mais famoso da história. Os Gêmeos, em São Paulo, devolveram poesia ao concreto com personagens amarelos que sussurram: por que a cidade não pode ser sonho?

Mas outros artistas fizeram do “por quê?” uma aventura ainda mais lúdica.

Salvador Dalí queria saber por que os sonhos não poderiam invadir a vigília. Certa vez, em Londres, apareceu com um escafandro na cabeça, dizendo que precisava “respirar as ideias do inconsciente”. Quase sufocou no meio da palestra. Ironia perfeita para quem vivia entre o absurdo e o genial.

Escher desenhou escadas que sobem e descem ao mesmo tempo, abrindo uma porta para o impossível.

Relativity (1953), de M.C. Escher. Quando até a gravidade se rende ao jogo da imaginação
Relativity (1953), de M.C. Escher. Quando até a gravidade se rende ao jogo da imaginação

Joan Miró e Paul Klee perguntavam de outro modo: por que o adulto não pode voltar a ver o mundo como criança? Suas linhas brincalhonas e cores vibrantes lembram que imaginar também é uma forma de pensar. Em Castelo e Sol, Klee transforma triângulos e quadrados em casas, torres e telhados. É o mundo como um brinquedo geométrico à espera de ser reinventado.

Paul Klee, “Castelo e Sol” (1928). O mundo se refaz com olhos de criança. Ainda sabemos olhar assim?
Paul Klee, “Castelo e Sol” (1928). O mundo se refaz com olhos de criança. Ainda sabemos olhar assim?

O mesmo espírito lúdico se ergue em escala monumental com Calder, que instalou seu Flamingo no centro de Chicago. Uma criatura vermelha de aço, imensa e leve, que parece perguntar: por que o espaço público deve ser apenas funcional, se pode também ser brincadeira e cor?

Alexander Calder, “Flamingo” (1974). Um pássaro de aço que ensina a cidade a brincar
Alexander Calder, “Flamingo” (1974). Um pássaro de aço que ensina a cidade a brincar

Lewis Carroll, em Alice no País das Maravilhas, levou o “por quê?” ao terreno do absurdo lógico. Em seu mundo, não apenas as respostas, mas as próprias perguntas se desmancham: por que não celebrar um “desaniversário”? O nonsense, afinal, é outra forma de perguntar.

Todos, cada um à sua maneira, transformaram o “por quê?” em destino: uma obsessão que é também a mais alta forma de fé no mistério.

Perguntar é existir

A arte sempre lembrará de que o “por quê?” não se esgota. Ele é motor, brincadeira, ferida, obsessão. E, no fundo, perguntar “por quê?” é mais do que um gesto intelectual. É uma forma de existir plenamente.

Primo Levi dizia que “não compreender é como estar cego”, e talvez seja por isso que seguimos tateando o mundo com perguntas, como crianças que descobrem o real com frescor, como Beethoven que rege sem ouvir, como Dalí que respira ideias com escafandro.

É possível que nunca encontremos todas as respostas. Mas, enquanto alguém, em qualquer canto do mundo, erguer os olhos e perguntar “por quê?”, haverá ciência, haverá arte, haverá futuro.

E se há algo que nos consola nesse impulso, talvez seja a lembrança de Ivan Lins: “A vida pode ser maravilhosa.” Sobretudo quando voltamos a nos maravilhar com o simples ato de viver.