Cultura

O que dizem os passarinhos?

Analisando a presença dos pássaros em mitos e artes, revelando suas múltiplas significações ao longo da história

Autorretrato com Macaco e Papagaio (1942), de Frida Kalo - Imagem: Reprodução
Autorretrato com Macaco e Papagaio (1942), de Frida Kalo - Imagem: Reprodução
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 02/09/2025, às 09h47


O voo das metáforas nas artes

“Tu que anda pelo mundo / Tu que tanto já voou/ Tu que fala aos passarinhos / Alivia minha dor/ Tem pena d'eu/ Diz por favor/ Onde anda o meu amor?”

(Luiz Gonzaga, Sabiá)

Nos versos de Luiz Gonzaga, um tesouro de sentimentos guardados. Neles, o sabiá não é apenas ave. É confidente, mensageiro, guardião da saudade. O canto que atravessa o sertão e a distância torna-se símbolo da esperança de retorno, do consolo diante da ausência, da lembrança do amor querido e desejado. Em sua leveza, o pássaro carrega toda a densidade da alma humana.

Não por acaso, essa mesma ave simbólica se projeta em outros universos artísticos. Se no sertão ela é voz da saudade, na pintura moderna de Pablo Picasso ela se transforma em emblema coletivo. Ao criar sua célebre Pomba da Paz, Picasso amplia a metáfora: do íntimo da dor pessoal ao sonho universal da concórdia. A fragilidade das asas traduz a força da esperança.

Entre todos os pássaros simbólicos, entretanto, nenhum conquistou tanto a imaginação humana quanto a Fênix
Entre todos os pássaros simbólicos, entretanto, nenhum conquistou tanto a imaginação humana quanto a Fênix

Fascinante, ela atravessa mitologias e séculos como arquétipo maior do renascimento. Sua origem remonta à ave Benu, reverenciada no Egito antigo como manifestação do deus solar Rá, em Heliópolis. Mais tarde, na Grécia, foi descrita por autores como Hesíodo e Heródoto como uma grande ave semelhante à águia, de plumagem dourada e avermelhada, capaz de viver quinhentos anos antes de arder em chamas e ressurgir das próprias cinzas.

Esse mito ultrapassou fronteiras e foi assimilado por romanos, árabes e chineses, sempre preservando sua essência: a promessa de que nada termina definitivamente, de que a vida renasce em ciclos. A Fênix não é apenas uma criatura mitológica. É imagem arquetípica do ser humano que cai e se reergue, que encontra força no que parecia ruína.

Assim como nos mitos, também na literatura os pássaros ganharam asas simbólicas próprias. O corvo de Edgar Allan Poe repete obsessivamente “nevermore” (“nunca mais”) a toda pergunta sobre esperança, amor, ou vida após a morte, ecoando a dor que jamais cessa.

No Brasil, Gonçalves Dias eternizou o sabiá como representação simbólica da saudade da pátria em sua Canção do Exílio (1834):

“Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o sabiá; / As aves que aqui gorjeiam/
Não gorjeiam como lá.”

O verso tornou-se emblema nacional, transformando o sabiá no pássaro da memória coletiva, da saudade da terra distante que nunca deixa de ressoar no coração.

Mas se na literatura o pássaro canta nostalgias, nas artes visuais ele ganha novas formas e significados. Joan Miró transformou as aves em linhas e cores livres, misturando-as a estrelas e mulheres, como se o voo fosse pura imaginação.

Woman and Bird in the night, de Joan Miró
Woman and Bird in the night, de Joan Miró

Paul Klee, em sua célebre Twittering Machine (1922), levou a metáfora a um território ambíguo: suas aves mecânicas, presas a manivelas, parecem ironizar a artificialidade da comunicação moderna, reduzindo o canto natural a um ruído maquínico.

Twittering Machine (1922), de Paul Klee
Twittering Machine (1922), de Paul Klee

Nesse diálogo, também surge Frida Kahlo, que em obras como Me and My Parrots (1941), retrata-se cercada de pássaros coloridos, que funcionam como companhia e extensão de si mesma, traços de ternura e ao mesmo tempo testemunhas silenciosas de sua dor física. Nos ombros de Frida, os pássaros não anunciam liberdade, mas partilham a clausura, e nesse contraste revelam a profundidade de sua humanidade.

E no cinema, Alfred Hitchcock radicalizou a transposição poética ao inverter seu sentido: em Os Pássaros (1963), as aves deixam de ser mensageiras de paz ou guardiãs de memória e se tornam prenúncio de medo e caos. O voo, que tantas vezes libertava, aqui aprisiona, lembrando que também a natureza pode ser enigma e ameaça.

O que dizem os passarinhos, afinal?

Entre a dor íntima e a esperança universal, entre o sonho e o medo, o pássaro atravessa culturas e séculos como representação simbólica. Presente em mitos, religiões, artes e literaturas, ele transcende fronteiras de tempo e espaço.

Ora símbolo de liberdade e transcendência, ora imagem da dor, do exílio ou do retorno, é sempre um ser liminar: habita o céu e a terra, o visível e o invisível, como a própria arte. Por isso se torna a voz daquilo que as palavras não alcançam, evocando sentimentos e estados que não cabem na linguagem direta, mas na sua expressão se tornam presença.

Como escreveu Rabindranath Tagore: “Os pássaros não cantam porque têm uma resposta. Cantam porque têm uma canção.”

Tagore nos lembra que nem tudo se explica ou se responde. O pássaro não canta para resolver enigmas ou justificar sua existência. Ele canta porque precisa cantar.

E é nesse gesto gratuito que se revela o essencial. Arte, criação, amor e esperança não precisam de justificativa; existem porque não podem deixar de existir. São forças que brotam sem cálculo, como o canto do pássaro ao amanhecer. Não se explicam, apenas acontecem. São dádivas que nos lembram que, mesmo diante da dor ou da incerteza, ainda encontramos formas de beleza, de renovação e de voo.