Analisando a presença dos pássaros em mitos e artes, revelando suas múltiplas significações ao longo da história
por Marlene Polito
Publicado em 02/09/2025, às 09h47
O voo das metáforas nas artes
“Tu que anda pelo mundo / Tu que tanto já voou/ Tu que fala aos passarinhos / Alivia minha dor/ Tem pena d'eu/ Diz por favor/ Onde anda o meu amor?”
(Luiz Gonzaga, Sabiá)
Nos versos de Luiz Gonzaga, um tesouro de sentimentos guardados. Neles, o sabiá não é apenas ave. É confidente, mensageiro, guardião da saudade. O canto que atravessa o sertão e a distância torna-se símbolo da esperança de retorno, do consolo diante da ausência, da lembrança do amor querido e desejado. Em sua leveza, o pássaro carrega toda a densidade da alma humana.
Não por acaso, essa mesma ave simbólica se projeta em outros universos artísticos. Se no sertão ela é voz da saudade, na pintura moderna de Pablo Picasso ela se transforma em emblema coletivo. Ao criar sua célebre Pomba da Paz, Picasso amplia a metáfora: do íntimo da dor pessoal ao sonho universal da concórdia. A fragilidade das asas traduz a força da esperança.
Fascinante, ela atravessa mitologias e séculos como arquétipo maior do renascimento. Sua origem remonta à ave Benu, reverenciada no Egito antigo como manifestação do deus solar Rá, em Heliópolis. Mais tarde, na Grécia, foi descrita por autores como Hesíodo e Heródoto como uma grande ave semelhante à águia, de plumagem dourada e avermelhada, capaz de viver quinhentos anos antes de arder em chamas e ressurgir das próprias cinzas.
Esse mito ultrapassou fronteiras e foi assimilado por romanos, árabes e chineses, sempre preservando sua essência: a promessa de que nada termina definitivamente, de que a vida renasce em ciclos. A Fênix não é apenas uma criatura mitológica. É imagem arquetípica do ser humano que cai e se reergue, que encontra força no que parecia ruína.
Assim como nos mitos, também na literatura os pássaros ganharam asas simbólicas próprias. O corvo de Edgar Allan Poe repete obsessivamente “nevermore” (“nunca mais”) a toda pergunta sobre esperança, amor, ou vida após a morte, ecoando a dor que jamais cessa.
No Brasil, Gonçalves Dias eternizou o sabiá como representação simbólica da saudade da pátria em sua Canção do Exílio (1834):
“Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o sabiá; / As aves que aqui gorjeiam/
Não gorjeiam como lá.”
O verso tornou-se emblema nacional, transformando o sabiá no pássaro da memória coletiva, da saudade da terra distante que nunca deixa de ressoar no coração.
Mas se na literatura o pássaro canta nostalgias, nas artes visuais ele ganha novas formas e significados. Joan Miró transformou as aves em linhas e cores livres, misturando-as a estrelas e mulheres, como se o voo fosse pura imaginação.
Paul Klee, em sua célebre Twittering Machine (1922), levou a metáfora a um território ambíguo: suas aves mecânicas, presas a manivelas, parecem ironizar a artificialidade da comunicação moderna, reduzindo o canto natural a um ruído maquínico.
Nesse diálogo, também surge Frida Kahlo, que em obras como Me and My Parrots (1941), retrata-se cercada de pássaros coloridos, que funcionam como companhia e extensão de si mesma, traços de ternura e ao mesmo tempo testemunhas silenciosas de sua dor física. Nos ombros de Frida, os pássaros não anunciam liberdade, mas partilham a clausura, e nesse contraste revelam a profundidade de sua humanidade.
E no cinema, Alfred Hitchcock radicalizou a transposição poética ao inverter seu sentido: em Os Pássaros (1963), as aves deixam de ser mensageiras de paz ou guardiãs de memória e se tornam prenúncio de medo e caos. O voo, que tantas vezes libertava, aqui aprisiona, lembrando que também a natureza pode ser enigma e ameaça.
O que dizem os passarinhos, afinal?
Entre a dor íntima e a esperança universal, entre o sonho e o medo, o pássaro atravessa culturas e séculos como representação simbólica. Presente em mitos, religiões, artes e literaturas, ele transcende fronteiras de tempo e espaço.
Ora símbolo de liberdade e transcendência, ora imagem da dor, do exílio ou do retorno, é sempre um ser liminar: habita o céu e a terra, o visível e o invisível, como a própria arte. Por isso se torna a voz daquilo que as palavras não alcançam, evocando sentimentos e estados que não cabem na linguagem direta, mas na sua expressão se tornam presença.
Como escreveu Rabindranath Tagore: “Os pássaros não cantam porque têm uma resposta. Cantam porque têm uma canção.”
Tagore nos lembra que nem tudo se explica ou se responde. O pássaro não canta para resolver enigmas ou justificar sua existência. Ele canta porque precisa cantar.
E é nesse gesto gratuito que se revela o essencial. Arte, criação, amor e esperança não precisam de justificativa; existem porque não podem deixar de existir. São forças que brotam sem cálculo, como o canto do pássaro ao amanhecer. Não se explicam, apenas acontecem. São dádivas que nos lembram que, mesmo diante da dor ou da incerteza, ainda encontramos formas de beleza, de renovação e de voo.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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