Cultura

Grafitti, a fala das cidades

Explore a evolução do graffiti desde as cavernas de Altamira até os muros de Berlim e São Paulo

Etnias, de Kobra - Imagem: Reprodução
Etnias, de Kobra - Imagem: Reprodução
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 14/10/2025, às 10h31


Raízes que atravessam séculos

As cidades falam. Antes dos letreiros de néon, antes dos outdoors, já havia sinais gravados em pedra, inscrições anônimas que deixavam recados para o futuro. O graffiti moderno, criação da tinta em spray e da urgência das ruas, é apenas a versão mais visível de um gesto muito antigo: o de riscar a própria existência no espaço público.

Nas cavernas de Altamira e Lascaux, as primeiras mãos em negativo já eram declarações de presença: estive aqui, vi, senti. Séculos depois, em Pompeia, inscrições de amor, sátiras políticas e anúncios de gladiadores foram preservados pela lava, revelando uma cidade que não se calava.

E os muros não ficaram mudos entre esses dois momentos. Durante a Idade Média, peregrinos gravaram símbolos nas rotas de Santiago, prisioneiros deixaram orações nas paredes úmidas de masmorras e viajantes riscavam seus nomes em colunas romanas como prova de passagem. No século XIX, Paris amanhecia coberta de cartazes e versos em noites de revolução. A cidade sempre falou. Apenas mudou de traço e de ritmo.

Essa mesma pulsão reapareceu em Nova York, no fim dos anos 1960, quando jovens do Bronx e do Brooklyn, muitos negros e porto-riquenhos, filhos de uma metrópole em crise, começaram a assinar muros e portas com apelidos e números de rua.

Em 1971, o New YorkTimes noticiou as marcas de TAKI 183, um mensageiro que deixava sua assinatura em cada esquina. Logo os trens do metrô tornaram-se telas ambulantes. Artistas como Lee Quiñones, Lady Pink, Futura 2000 e Dondi cobriam vagões inteiros com letras explosivas e personagens fantásticos.

De repente, a cidade se moveu coberta de cor; um museu sobre trilhos, onde cada viagem era uma nova exposição.

A cidade como tela

Seis grandes silos na Ilha de Granville, de Os Gêmeos. Bienal de Vancouver
Seis grandes silos na Ilha de Granville, de Os Gêmeos. Bienal de Vancouver

O graffiti é uma arte que nasce sabendo que pode desaparecer. Chuva, tinta oficial, novas camadas de spray, tudo conspira para apagá-lo. E é justamente esse risco que lhe dá vitalidade. A rua é a galeria mais democrática que existe. Não exige ingresso, não seleciona público, não pede silêncio. Qualquer passante é espectador e crítico. Cada muro é ao mesmo tempo convite e desafio, um espaço de diálogo que pertence a todos.

Em Berlim, o Muro que dividiu a cidade se transformou, após a queda, em uma das maiores galerias a céu aberto do mundo. Em São Paulo, viadutos, empenas (parede lateral “cega” de um edifício, geralmente alta e sem janelas) e vielas são palcos onde a metrópole exibe, apaga e reinventa seus próprios sonhos.

Muro de Berlin – Lado Oriental  (Creative Commons)
Muro de Berlin – Lado Oriental (Creative Commons)

Entre crime e arte

Nenhuma outra forma de expressão vive tanta tensão legal. Para uns, o graffiti é vandalismo; para outros, patrimônio cultural.

Nova York, que o viu nascer, gastou milhões de dólares para limpar trens e muros nos anos 1980, apenas para ver a arte ressurgir em galerias e museus. Berlim, ao contrário, preservou trechos inteiros do Muro pintados por artistas do mundo inteiro, reconhecendo neles uma memória coletiva.

Em São Paulo, a ambiguidade é constante: a prefeitura ora apaga, ora premia e financia murais, revelando o dilema entre punir e proteger. Essa disputa não é apenas jurídica. É a prova de que a cidade sente que ali, naquelas camadas de tinta, pulsa algo que não pode ser domesticado.

Poética do protesto

Stop and Search, de Banksy, 2007, na Palestina
Stop and Search, de Banksy, 2007, na Palestina

O graffiti é, ao mesmo tempo, arte e pergunta. Por que aceitar a guerra? provoca Banksy em Londres e na Cisjordânia. Por que o sonho não pode ocupar o concreto? sussurram os gigantes de Os Gêmeos. Em cada traço, há mais do que cor: há a recusa do silêncio, a afirmação de que o espaço público é de quem o vive.

Desde os slogans de Maio de 1968 em Paris, um de seus slogans “A imaginação toma o poder”, o graffiti é também grito político. No Brasil, a pichação foi voz de resistência durante o período militar, quando jovens arriscavam a liberdade para escrever palavras de ordem.

Estética e linguagem

Mas o graffiti não vive só de protesto. Ele é também invenção estética. A assinatura, a tag, é mais que nome: é identidade, gesto coreografado. O traço largo, o brilho das cores, a tridimensionalidade das letras criam uma caligrafia própria que já influenciou moda, design gráfico e publicidade.

Jean-Michel Basquiat, Untitled (Skull), 1981. Por que a dor também tem cor?
Jean-Michel Basquiat, Untitled (Skull), 1981. Por que a dor também tem cor?

Basquiat saiu das ruas para o circuito de galerias sem perder a pulsação urbana que o formou. Eduardo Kobra inunda os espaços com seus murais caleidoscópicos. E Os Gêmeos disponibilizam seus personagens amarelos e de olhos miúdos que olham as cidades e suas gentes.

A fala que não se cala

O graffiti vive do efêmero, mas não se apaga. Fotos, livros e coleções privadas registram o que a chuva e o tempo insistem em levar. Mesmo quando o muro é repintado, a pergunta permanece: quem tem o direito de escrever a cidade?

Talvez seja esse o seu maior paradoxo: arte feita para desaparecer, mas destinada a sobreviver. O spray escorre, mas a voz fica. O graffiti não apenas enfeita: ele narra, protesta, sonha, e lembra a todos que a cidade é organismo vivo, impossível de calar.