Ela conhece as ervas. Fala com a lua. Não se curva aos homens. Por séculos, ela foi temida, perseguida, queimada. Mas nunca silenciada. Quem é a bruxa? E por que ainda nos assusta?

por Marlene Polito
Publicado em 29/07/2025, às 10h55
Nas entrelinhas da história, os saberes que inquietavam
No creo en brujas, pero que las hay, las hay
O ditado espanhol é conhecido. Ao mesmo tempo que nega, afirma. Ri, mas não brinca. E talvez seja esse o segredo da sua permanência. Dá voz a uma certeza envergonhada, um saber ancestral que resiste à lógica, mas insiste em soprar ao ouvido das épocas.
Medeia, um arquétipo ancestral
Antes de bruxas serem queimadas, elas foram cantadas. Nos tempos neolíticos, já se reverenciavam figuras femininas ligadas à fertilidade e à proteção.
Na Antiguidade, mulheres detinham saberes que não se explicam e despertam fascínio e receio. Medeia, por exemplo, não era apenas uma feiticeira: era neta de um deus, filha de uma sacerdotisa e conhecedora de botânica, alquimia e estratégia.
Uma mulher fora do controle, por isso, imortalizada como perigosa.
O saber transformado em heresia
Com o advento do Cristianismo e a organização da Igreja, saberes populares passaram a ser vistos como ameaça. Curar com ervas, benzer, ler os ciclos da lua, prever mudanças climáticas, dançar à noite, acompanhar partos, práticas femininas do cotidiano das aldeias tornaram-se heresias.
Segundo a teologia da época, essas mulheres intervinham onde só Deus deveria agir, tocando o corpo onde só o milagre poderia tocar. Atribuíram-lhes também feitos sobrenaturais, como voar, conversar com espíritos, pactuar com o demônio.
Nos séculos que se seguiram, a realidade se encarregou de dar corpo e dor a essas imagens. Assim, por meio de um imaginário simbólico alimentado pelo medo e pela religiosidade popular, as perseguições se espalharam pela Europa, tanto em contextos católicos quanto protestantes.

A tortura substituiu o julgamento. A fogueira, o veredicto
A caça às bruxas
A transformação da mulher sábia em bruxa demoníaca foi sendo construída gradualmente. A publicação do Malleus Maleficarum, em 1486, consolidou essa visão ao descrever como identificar uma bruxa e atribuir a ela pactos demoníacos.
Na Europa, entre os séculos XV e XVIII, estima-se que entre 40 e 50 mil pessoas tenham sido executadas.
Em Salém, no final do século XVII, o fundamentalismo religioso e a histeria coletiva levaram cerca de 150 pessoas aos tribunais e resultaram em 25 execuções. Mulheres jovens, serviçais, estranhas ou livres demais foram interrogadas, presas, enforcadas.
O delírio moral encontrou seu alvo na mulher que foge ao controle, do corpo, do desejo, da palavra.
O escarlate da exclusão
Mas não só as fogueiras queimam. Em The Scarlet Letter (1850), Nathaniel Hawthorne recria a atmosfera puritana da colônia de Massachusetts no século XVII.
Hester Prynne, acusada de adultério, é lançada ao ostracismo. Recusa-se a revelar o nome do pai da criança, um ministro religioso, e transforma o estigma em força. Assim como as bruxas, ela é punida por saber, desejar, resistir.
O feminino passa a ser visto como origem do pecado e da desordem.

Como Hester, as bruxas também ostentaram símbolos de culpa
Séculos XVIII e XIX, entre o fascínio e a inquietação
Com o Iluminismo, a razão ganhou espaço e os julgamentos por bruxaria declinaram. Mas a figura da bruxa não desapareceu.
No Romantismo, na literatura gótica e vitoriana, ela retorna em figuras femininas enigmáticas, sombrias, fora do lugar. Não são mais formalmente condenadas, mas continuam a ser temidas.
E hoje… ainda há bruxas?
No mundo contemporâneo, o arquétipo da bruxa não se dissolveu. Ressurge em mulheres que exploram saberes alternativos, estudam astrologia, resgatam rituais, cultivam vínculos com a natureza. Muitas estão fora do poder formal, mas constroem outras formas de autoridade, simbólica, afetiva, poética.
Desde os anos 1970, com os movimentos neopagãos e feministas, passaram a resgatá-la não mais como ameaça, mas como símbolo de liberdade.
A bruxa pop, das séries, memes e estética do oculto, mistura humor, crítica social e empoderamento.
O que antes queimava, agora ilumina

Wandinha Addams, a bruxinha, em uma série de sucesso
Há coisas que não se explicam
Talvez não precisemos mais perguntar se existem bruxas.
Basta observar com atenção as mulheres que atravessam o mundo em silêncio, pelas dobras do cotidiano. Estão onde ninguém espera, e onde sempre estiveram.
Elas não vestem capas nem carregam caldeirões, mas cultivam saberes que ainda escapam às medidas formais. Sabem de plantas, de vínculos, de presságios.
Não estão contra ninguém, apenas não cabem em moldes. E isso basta para que, vez ou outra, voltem a ser temidas.
No fundo, o que o ditado sussurra talvez não seja um aviso, mas uma lembrança: há coisas que não se explicam, apenas se reconhecem. E há pessoas que, mesmo quando não cremos, continuam a ser.
São símbolos vivos de um saber antigo, um tipo de presença que o mundo ainda está aprendendo a decifrar.

Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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